Pioneirismo em cores e traços (3ª parte)

João de Deus Cardoso ainda continua se preocupando com a melhora dos ambientes para todas as funções da vida humana nas cidades, nas estradas e em suas áreas de trabalho

João de Deus Cardoso é um obstinado, no alto de seus 78 anos de vida e quase 60 de profissão. Português de nascimento, vindo da conhecida região da Serra da Estrela, desembarcou no Brasil em 1949, com seis anos e uma trajetória de vida que parecia lhe reservar algo de proveitoso tempos depois.

Ainda menino, na escola fundamental, desenhava veículos e casas, com criações em perspectivas, bem caprichados, feitos com lápis pretos e pintados com lápis e colorantes. O destino parece que estava lhe assoprando no ouvido a profissão que escolheria mais tarde.

O talento já era visível no menino com oito anos

Dos tempos da juventude, já com 14 anos, escolheu ser arquiteto, carreira escolhida por influência própria, pois a família não tinha laços com a atividade – eram agricultores e pecuaristas (para subsistência) em terras lusas. Ingressou da FAUUSP – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo –, em 1965, com uma perspectiva de futuro para moldar seu interesse pelas linhas, traços e cores.

A curiosidade e o empenho eram características marcantes de Cardoso. No terceiro ano do curso de arquitetura, passou a prestar mais atenção nas revistas e livros que abordavam a programação visual e o desenho industrial. Eram publicações que vinham da Itália, França, Inglaterra e dos Estados Unidos.

Segundo ele, na década de 1960, a concorrência comercial obrigava as empresas a renovarem ou redesignarem (redesign) suas identidades visuais, com ênfase no aspecto das embalagens. João de Deus se formou em 1969 e nunca mais se esqueceu de observar e promover em seus projetos uma mensagem sublime, do que é bonito, vende mais. (Raymond Loewy 1929 – a feiura vende mal)

Após conquistar importante espaço na área de criação e desenvolvimento de pinturas para frotas de veículos comerciais, o arquiteto teve pela frente dois novos desafios, entre 1976 e 1978, em meio a sua agenda bem movimentada e que promovia uma fundamental sinergia com as fabricantes de carroçarias para que suas produções artísticas estampassem, como embalagens, os mais variados modelos de ônibus.

Nos anos de 1976 e 1977, saindo um pouco do habitual processo da comunicação visual dos veículos comerciais, Cardoso foi contratado pelo Grupo Associado de Pesquisa Planejamento (GAPP), liderado pelo engenheiro Sérgio Kehl, para coordenar o desenvolvimento dos novos vagões do metrô paulistano para a linha Leste-Oeste com dimensionamento definido pelas estruturas da Budd iguais às da linha Norte-Sul.

O projeto para o metrô paulistano foi diferencial na carreira do arquiteto

A equipe envolvida no projeto congregava 35 profissionais, de várias especialidades, com especial destaque para a ergonomia física e cognitiva com Itiro Iida e o consultor italiano Rodolfo Bonetto, dedicado à produção industrial de máquinas e automóveis.

Tal trabalho consistiu em especificar e dimensionar a ambientação completa do interior dos vagões (bancos, portas, janelas, iluminação, ventilação, apoios, dentre outros componentes); da cabine de comando (banco do condutor, painéis de controle), com destaque para a ergonomia esmiuçada nesses dois ambientes; do exterior, com o desenho da máscara frontal, onde o destaque era a grande visibilidade proporcionada para o condutor, respeitando a estrutura Budd; e a passagem de ligação entre os vagões, com destaque para as vedações estanques a ruídos e água.

No referido projeto, João de Deus ressalta que as especificações dos materiais referiam-se a todas as características sensoriais, facilidade para a manutenção, durabilidade e conforto interno. Sua atuação no projeto foi, além do processo criativo, organizar os documentos técnicos recebidos do departamento de engenharia do Metrô e dos fabricantes dos trens.

Em 1978, seus conhecimentos lhe renderam um novo e importante convite, por parte da montadora Mercedes-Benz, para projetar e construir seu estande no Salão do Automóvel daquele ano, no centro de exposições Anhembi, em São Paulo. O espaço, com 2 mil metros quadrados, foi utilizado para a apresentação de uma nova geração de ônibus da marca – monobloco O-364 12R e 13R. Astuto e atencioso, o arquiteto seguiu a risca para cumprir os prazos determinados, com custos disponíveis e os conceitos sugeridos por ele junto a diretoria da empresa.

No Salão do Automóvel de 1978, a arte de João de Deus

Sua proposta para o estande levou em consideração diversos aspectos que tornaram o local harmonioso e agradável, numa relação positiva entre cores e luzes.

A iluminação artificial simulava a variação da luz natural durante os dias no imenso território do Brasil, em três espaços, como praças de pequenas cidades, com pisos de pedra calcária. Havia, ainda, uma passarela elevada que permitia a observação dos novos veículos e apresentava painéis com o processo produtivo dos novos ônibus, que substituiriam os modelos O-355 e O-362 da montadora, receberam cores e desenhos, valorizando a carroçaria e a segurança.

De volta aos ônibus

Com o sucesso do evento, João de Deus foi contratado, na gestão do diretor Industrial Volker Rubi, para desenvolver, entre 1979 e 1980, (analisando a série O-364) os projetos de ambientação para os interiores do futuro modelo de ônibus O-370, nas versões rodoviária e urbana, com especificação de todos os materiais, características industriais, padrões de desenhos, cores, custos de produção e manutenção e, principalmente, promover o conforto aos passageiros em rotas de longas distâncias.

Nesse contexto, para melhor conhecer as necessidades dos passageiros que habitavam as regiões Norte e Nordeste do Brasil, o arquiteto e o diretor de Vendas de Ônibus da Mercedes-Benz, José Paulo Gandolfo, embarcaram em uma viagem com destino aos frotistas e concessionários da marca localizados nas cidades de Belém, Fortaleza, Recife e Salvador.

O intuito, segundo Cardoso, foi de estimular a produção de novos materiais, com cores e texturas que caracterizassem e pudessem organizar sistemas de ambientação dos ônibus vinculados às raízes culturais dos povos brasileiros a partir de cartelas de tecidos, painéis impressos, tecidos com elasticidade para revestir as poltronas, mantas resistentes para o piso, novos bagageiros, cortinas, luminárias, dentre outros componentes novos.

Uma importante iniciativa proposta pelo arquiteto foi a necessidade de substituição das chapas de revestimento das paredes internas da carroçaria, que utilizavam laminados melamínicos, por chapas de alumínio impresso. Isso acabou sendo determinante na redução dos óbitos em acidentes que envolviam os ônibus da marca e, também, em todos os veículos com carroçarias sobre as plataformas.

Nessa época, as estradas que ligavam as regiões Sudeste e Nordeste eram precárias. As condições operacionais daquele tempo exigiam demais dos ônibus, levando-os à exaustão. Entre as décadas de 1970 e 1980, um grande processo migratório foi destaque entre as duas áreas brasileiras, fazendo com que um grande volume de pessoas se deslocasse de suas origens (Nordeste) em busca de melhores condições de vida e de emprego (Sudeste), utilizando-se para isso dos ônibus rodoviários.

João de Deus Cardoso ainda continua se preocupando com a melhora dos ambientes para todas as funções da vida humana nas cidades, nas estradas e em suas áreas de trabalho. Em sua percepção, a luz é um fator primordial para a saúde e para a cura, porque “não há vida sem luz e, também, não há cores sem luz”.

E, o melhor da futura linha de ônibus rodoviário O-370, considerada uma revolução em conceitos para o veículo aqui no Brasil, teve a contribuição do arquiteto, profissional que motivou muitas das mudanças no mercado visual do transporte brasileiro. Mas, isso fica para uma próxima oportunidade.

Continua…

Imagens gentilmente cedidas por João de Deus Cardoso

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