46º. Capítulo – “Terminal Gentileza – Lucas 18:25″

O Profeta entendeu perfeitamente a mensagem, mas disse ser impossível “afinar o sangue” porque, ali ao lado, estava a entrada e saída do Porto do Rio de Janeiro e estava localizada a segunda maior e mais importante rodoviária interestadual do País

Ponto de Vista

Por Antonio Sá, consultor de Marketing, Planejamento e Operações de Empresas de Transporte

Um burburinho celestial estava se espalhando.

O Profeta Gentileza, personagem urbano do Rio de Janeiro, estaria muito preocupado.

Ele, que pintara suas inscrições em 56 pilastras na entrada da rodoviária Novo Rio, andava no céu, repetindo sem parar, o que qualquer motorista ou passageiro da Av. Brasil, aqui por baixo, também comentava.

O que se falava era que haveria brutais engarrafamentos na Av. Brasil quando as sete faixas por sentido ficassem reduzidas a apenas duas faixas, com a conclusão de um novo terminal que seria inaugurado e que levaria o nome do Profeta.

Tenso, passava os dias escrevendo e reescrevendo em suas famosas tábuas uma citação de Lucas 18:25, “ke et mais facil entrarrr com um camelo pelo fundo de uma agulia do que o trrransito da Av. Brraaasil ser reduzido at duas pistaes”.

A sabedoria popular não foi suficiente:

Como foi dito, Gentileza conhecia perfeitamente a região e, também, era um personagem bastante conhecido dos maiores especialistas em tráfego, da cidade. Agora no Céu, reencontrara vários deles.

Sim, ele era famoso entre os ambulantes que vendiam água, biscoito ou sabe-se lá o que mais, aos motoristas e passageiros no asfalto, que diariamente circulavam por ali.

À época e agora, os ambulantes sabiam e ainda sabem, quase tão bem quanto o Waze, Google Maps e outros aplicativos, os horários e sentidos em que o trânsito fica “devagar-quase-parando” nas vias.

Não seria diferente na Francisco Bicalho, avenida que margeia o futuro terminal.

Todos os citados sabem da existência há décadas, dos engarrafamentos pela manhã e à tarde naquela via.

Minhas fontes celestiais me disseram que Gentileza soubera do empenho de vários técnicos da CET-RIO que tentaram dissuadir o alcaide da cidade, em construir o terminal, em outro local. Soube que os técnicos teriam filmado os ambulantes vendendo produtos por ali. Sem dúvida, a sabedoria popular indicava o local como problemático.

Gentileza revoltado mostrava uma de suas tábuas onde havia escrito a décadas também em uma das pilastras: “que o mundo, é regido pelo capeta capital que vende tudo e destrói tudo”.

Era uma mensagem antiga e premonitória: pois a solução encontrada levaria para o VLT passageiros do BRT da TransBrasil, ainda que isso acontecesse numa das regiões mais congestionadas da cidade.

Os cirurgiões

Gentileza, em seu desespero celestial, andara conversando com cirurgiões cardiovasculares, pois ele próprio sabia que a localização do Terminal estava “no coração de várias artérias viárias“ da cidade.

Na ausência de melhores temas a discutir, os cardiologistas reunidos foram unânimes em dizer a Gentileza que “seria preciso afinar o sangue” de uma artéria tão entupida.

Em outras palavras, recomendaram tirar o tráfego pesado dali.

O Profeta entendeu perfeitamente a mensagem, mas disse ser impossível “afinar o sangue” porque, ali ao lado, estava a entrada e saída do Porto do Rio de Janeiro e estava localizada a segunda maior e mais importante rodoviária interestadual do País. Nessas condições os ônibus e caminhões nunca poderiam ser eliminados daquelas artérias.

Outros médicos, que haviam morrido antes de 2010, tentando colaborar, perguntaram em que condições estava “a ponte safena” que havia sido implantada na região. Eles se referiam ao Viaduto da Perimetral.

Colegas que chegaram àquele ambiente, após abril de 2014, informaram que a tal safena havia sido implodida “numa espécie de cirurgia urbana radical”.

Tratava-se a essa altura, de uma conversa celestial regada a sutilezas cardiovasculares.

O bombeiro hidráulico também contribui

Animados com o desafio a vencer, foram medir a capacidade física do BRT, em trazer passageiros, e medir a capacidade física do VLT, em escoar passageiros.

Nesse momento, junta-se à roda, um bombeiro encanador e ele é taxativo: “Se a capacidade do VLT for menor em escoar os passageiros, haverá um aumento da pressão naquela redução de capacidade”.

Antonio Sá

Como todos prestavam atenção, ele continuou…

Pela manhã, haverá uma espécie de recalque e uma onda de choque reversa reterá veículos e passageiros em pontos sequer considerados no projeto do terminal, ainda na Av. Brasil.

Os médicos se entreolharam por instantes.

Por dever, vício ou compromisso buscaram preservar “um coração” que estaria condenado.

Nisso, um especialista em transporte falou que haveria, ao lado do VLT, um mini terminal de ônibus urbano, que poderia ajudar a escoar passageiros para outros pontos da cidade.

Os cardiologistas mais jovens apontaram que essa solução funcionaria como um Stent e um antigo colaborador municipal (também falecido) falou orgulhoso que era por isso que o terminal seria chamado de “Terminal Multimodal Gentileza” por unir num só local BRT, VLT e ônibus municipal.

Um gaiato no grupo disse que multimodal era aquela conversa…

Uma criança aponta para o Rei Nu

Foi nesse instante que uma criança recém-chegada olhou para um desenho esquemático do terminal, onde a capacidade de cada modal estava mostrada pela grossura das linhas e disse: parece “SACANAGEM”!

Todos olharam para a criança.

Mais que depressa, o pai da criança explicou que ela se referia ao salgado de festa.

A criança aponta para a linha grossa do BRT e diz que ela estaria representando a salsicha, o queijo e a azeitona, o palito seria o VLT ou as linhas de ônibus.

Todos concordam e caem na gargalhada!

À essa altura, era cada vez mais gente opinando naquela reunião celestial.

Um matemático fez umas contas e falou que o VLT iria cruzar a Av. Francisco Bicalho com uma frequência de 22 composições por hora por sentido, interrompendo o tráfego, que por ali, sempre estivera muito ruim.

Um empresário de ônibus das antigas olhou para a entrada e saída de ônibus do terminal, paralela à saída do VLT e disse, “em alto e bom som”, que era impossível combinar saída do VLT, com a saída e entrada de ônibus no terminal.

A roda só crescia quando É-DE-SOM se apresenta. O tal gaiato do grupo explica que ele É DE SOM GONÇALO!

Quem sabia da piada pronta ri, mas Edson, um rodoviário ainda vestindo calça preta e camisa azul, diz que quem viesse da ponte Rio-Niterói seria muito prejudicado, pois o ponto de desembarque estaria muito distante do terminal.

Gentileza antigo usuário das Barcas e da ponte Rio – Niterói, face à sua tragédia pessoal, tem uma crise nervosa.

Se afasta, sobe numa pequena elevação e volta a repetir, enfático e profético, Lucas 18:25:” “ke et mais facil entrarrr com um camelo pelo fundo de uma agulia…”

Ânimos serenados, aos poucos o grupo foi se desfazendo, afinal estavam no Céu e cada um voltaria a procurar a sua Paz Celestial.

Mas de uma coisa todos sabiam, o novo terminal estava mal localizado, aumentaria o inferno do trânsito congestionado da cidade e os ambulantes iam prosperar.

Imagens – Acervo pessoal

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