A tarifa zero é um verdadeiro veneno disfarçado de remédio

Antes de pensar em simplesmente zerar as tarifas, é pertinente explorar soluções urbanísticas alternativas, como o conceito de cidades de 15 minutos

A partir desta semana, vamos divulgar uma série de ensaios escritos por Miguel Ângelo Pricinote sobre o tema da tarifa zero no transporte coletivo urbano. Miguel é subsecretário de Políticas para Cidades e Transporte do Governo de Goiás com as seguintes áreas de atuação – Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação em Mobilidade; Mobilidade como Serviço (MaaS), Metodologia tarifária para o Transporte Público Urbano. Também, tem bacharelado em Geografia (UFG/2004), especialização em Saúde Pública (UniLions/2006) e mestrado em Transportes (UnB/2008).

A proposta da tarifa zero, que busca oferecer acesso gratuito ao transporte coletivo urbano, convida-nos a refletir sobre as dinâmicas urbanas brasileiras sob uma lente sociológica. As semelhanças com políticas históricas, como o apartheid, são inegáveis e nos levam a questionar as estruturas sociais que perpetuam a segregação espacial em nossas metrópoles.

No entanto, a política de tarifa zero para o transporte público, embora pareça ser uma medida inclusiva à primeira vista, revela-se míope e enganadora, quando analisada sob a perspectiva sociológica. Ao eliminar o custo do transporte, ela não apenas promove a expansão urbana descontrolada, mas, também, compromete a qualidade do serviço, tornando-o progressivamente menos eficiente. Esta abordagem, ao invés de beneficiar as comunidades, acaba por afastar ainda mais a parcela vulnerável da população do acesso aos serviços básicos.

Antes de pensar em simplesmente zerar as tarifas, é pertinente explorar soluções urbanísticas alternativas, como o conceito de cidades de 15 minutos. Ao proporcionar a proximidade entre moradia e serviços essenciais, essa abordagem visa mitigar a segregação territorial ao promover a inclusão social e o acesso facilitado aos recursos urbanos. A requalificação das áreas centrais, ao invés de promover a elitização, busca revitalizar espaços urbanos de maneira inclusiva, preservando a diversidade cultural. Lembrando sempre que a melhor política de transporte é a de diminuir a necessidade de deslocamentos.

Outro ponto a considerar são as tarifas flexíveis, uma estratégia que, ao invés de eliminar completamente os custos de transporte, permite uma adaptação conforme a renda e a necessidade. Essa abordagem busca manter a sustentabilidade do sistema de transporte coletivo, evitando a deterioração dos serviços pela sobrecarga gerada pela tarifa zero.

É crucial reconhecer que a tarifa zero, por si só, não é uma panaceia e sim um grande engodo. Aumentar a demanda sem melhorar a qualidade do serviço pode resultar em condições de viagem precárias, congestionamentos e acidentes. Além disso, a medida pode conduzir ao processo de periferia das cidades, incentivando a ocupação em áreas distantes, mas menos atendidas pelos serviços urbanos.

Portanto, neste período pré-eleições municipais, é importante salientar que a tarifa zero, embora inspirada por princípios de inclusão social, demanda uma abordagem mais abrangente para enfrentar os desafios urbanos. A incorporação de conceitos, como cidades de 15 minutos, requalificação das áreas centrais e tarifas flexíveis, oferece perspectivas mais equitativas para a gestão municipal e metropolitana.

No entanto, é importante ressaltar que os problemas relacionados ao transporte público e à mobilidade urbana são sintomas, e não a doença em si, de um problema mais grave e crônico, que é o planejamento urbano e as políticas de uso e apropriação do solo. Dessa forma, a busca por uma cidade mais humana, democrática e sustentável pode ser fortalecida, superando as limitações inerentes à proposta isolada da tarifa zero. A solução para esses desafios passa necessariamente por uma revisão das políticas de uso e apropriação do solo, visando uma distribuição mais justa e equitativa dos recursos urbanos.

Imagem – Divulgação

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