Do fundo do baú (especial)

Na arqueologia do sistema de transporte brasileiro, vemos que a evolução das espécies também esteve presente no segmento da tecnologia veicular e suas características quanto ao reforço do conceito aplicado no transporte de passageiros. Ainda assim, outro fato que merece destaque foi o da produção própria de carroçaria, algo, então, inédito realizado por uma operadora

FLECHA DO TEMPO DOS DINOSSAUROS

Para as pessoas que não estão envolvidas com o segmento de transporte, mas que utilizam-se do modal para os seus deslocamentos, um ônibus é somente um ônibus. Contudo, muitos também sabem observar as grandes diferenças que marcaram e marcam o avanço das contínuas gerações de carroçarias, sejam elas rodoviárias ou urbanas, e seus detalhes que comprovam o impulso da engenharia nacional.

Se hoje, principalmente, os modelos estradeiros chamam a atenção pela representação de formas (o design automotivo), particularidades e acabamento, mediante visuais arrojados e modernos, em 1983 (meados desse ano), portanto quase 40 anos atrás, um ônibus reafirmou sua consagração no mercado em virtude das suas linhas estéticas apresentadas logo no começo da década de 1970 e que permaneceram, praticamente inalteradas, por longos anos depois.

Após esta breve manifestação em torno da cronologia, irei direto ao ponto para ressaltar duas versões: uma de modelo antológico – o Dinossauro – e o seu sucessor Flecha Azul, epítetos (palavrinha caprichada) outorgados por uma grande transportadora do cenário brasileiro do transporte de passageiros, a Viação Cometa.

A empresa, desde a sua constituição, em 1948, sempre teve uma cultura diversa em disponibilizar veículos e serviços diferenciados, que por meio de uma significativa rede operacional, ligavam a capital paulista às muitas cidades (destaque para os eixos São Paulo – Rio de Janeiro; Belo Horizonte; e Curitiba), em distâncias que não ultrapassavam os 600 quilômetros.

Em sua filosofia que regia os negócios, mais precisamente sobre sua frota de ônibus, a padronização dos veículos foi algo ressaltado como forma de promover otimização, num ato contínuo que previa a facilidade da manutenção, o estoque de peças e a eficiência produtiva nos serviços. Primeiramente, esse aspecto se deu com o tipo de chassi utilizado, com a marca da Scania sendo escolhida para formar seu conjunto de veículos.

Lançamento da carroçaria Dinossauro, pela Ciferal, no Salão do Automóvel de 1972

No tocante a carroçarias, a parceria com a encarroçadora carioca Ciferal ocasionou o uso de vários modelos, como o “Papo Amarelo”, “Flecha de Prata”, Líder (Jumbo e Turbo Jumbo), “Dinossauro” e depois com o “Flecha Azul”, estes dois últimos sob a concepção da mesma natureza estrutural, desenho e praticidade para aquilo que sempre foi pensando em relação às suas operações. Tais aspectos se deram no começo da década de 1960.

Aliás, esses dois modelos, quase que irmãos gêmeos em suas gerações, foram produtos inspirados em veículos importados, pela própria Cometa, numa época em que a indústria brasileira do ônibus ainda não existia e nem respondia ao mercado com versões identificadas para o melhor transporte de passageiros.

A operadora paulista, na sua necessidade por ter veículos capazes de cumprir com o intento (entre o final da década de 1940 e início da de 1950), se viu obrigado a trazer de fora alguns dos melhores ônibus, como as versões “Coach”, de fabricação norte-americana (General Motors Corporation), configurados com elementos e componentes que privilegiavam o conforto e o rendimento nas viagens. Com isso, a suspensão mais macia, motores possantes, poltronas com melhor acabamento e até sistema de ar-condicionado para proporcionar viagens mais agradáveis, eram disponibilizados aos passageiros.

Foram esses ônibus que apresentaram para nós um conceito amplamente explorado no mercado externo, com a inovação em termos de qualidade, resistência, peso e durabilidade – o duralumínio. No Brasil, a Ciferal soube muito bem explorar esse elemento, com produtos desenvolvidos sob a forma e acabamento com qualidade, além de serem ajustados perfeitamente para o mercado local.

Nesse contexto, destaque para a carroçaria Dinossauro (apresentada no final de 1972 e posta em operação no ano seguinte, modelo também considerado, para muitos, como divisor de águas do setor), sendo um veículo robusto, arrojado e marcante, provido da imagem e conceitos dos também GMs norte-americanos. Era a representação que a Cometa queria para a padronização em relação à sua frota.

A especificação da carroçaria seguia a determinação que a transportadora paulista queria, quase que exclusiva para o seu uso (detalhes próprios, como o chapéu dianteiro, a insígnia Cometa, o luminoso traseiro, chapeamento corrugado, muito rebite, leveza, resistência e o tradicional chassi Scania). Enfim, um produto de alfaiataria, sendo a fabricante carioca a alta costura que apresentou um modelo inovador ao mercado.

O Dinossauro caiu nas graças da Viação Cometa

Aliás, um outro detalhe que não pode ser esquecido refere-se a montadora Scania, que aproveitou aquele momento e ressaltou o seu, então, mais novo produto para o segmento de ônibus rodoviário – o chassi com motorização traseira BR 115 (posteriormente BR 116) -, que possibilitou bagageiros passantes no entre eixos e suspensão pneumática – com válvula de nível -. O modelo se amoldou, plenamente, à carroçaria Dinossauro.

Aqueles inspirados pelas lembranças do passado irão recordar os Dinossauros rodando pelas rodovias com as luzes acesas, durante o dia, como forma de proporcionar maior visibilidade a maior distância. Era um aspecto elementar empregado pela Cometa em seus veículos, sendo a primeira transportadora brasileira a ter essa iniciativa em termos de segurança.

Um clássico, assim se tornou a carroçaria, amealhando admiradores no decorrer dos anos. E não só o veículo ficou reconhecido. A própria Viação Cometa transformou-se em ícone em virtude de seu modelo operacional, distinguido pela qualidade e procedimentos diferenciados em sua administração.

Produção caseira

A quebra da encarroçadora Ciferal, logo nos primeiros anos da década de 1980, cessou o fornecimento da carroçaria para a transportadora, sua maior cliente em todos os tempos. Contudo, o modelo já estava enraizado no cotidiano da Cometa e era preciso fazer algo para que a padronização não caísse por terra. Em time que está ganhando, não se mexe, diria a máxima popular.

E foi assim que a operadora, num ato de pioneirismo, resolveu incursionar na fabricação da própria carroçaria, surpreendendo o mercado em 1983, inovando por converter-se em fabricante de seu próprio ônibus. Criou-se, dessa maneira, um departamento de engenharia e de desenvolvimento, para esboçar um novo e, ao mesmo tempo, usual e conhecido modelo, com a instituição da Companhia Manufatureira Auxiliar ou CMA (a sigla também foi utilizada para os serviços de manutenção dos ônibus da Cometa, antes reconhecida como Companhia Manutenção Auxiliar).  

Gabaritos e engenheiros foram trazidos do Rio de Janeiro para que o ideal se mantivesse vivo e rodando. Claro que a operadora rodoviária também investiu em outros maquinários e ferramentas essenciais para tal atividade.

O Flecha Azul, combinação entre a carroçaria CMA e o chassi Scania, trazia elementos inovadores

Com isso, surgiu, num primeiro momento, a atualização do Dinossauro para tornar aquilo, que já era bom, em algo melhor. Na CMA, instalada ao lado da garagem da operadora, a carroçaria ganhou uma releitura, de maneira que não perdesse sua essência, porém com novos aspectos em termos de acabamento interno (maior espaço do salão, poltronas – em couro – redesenhadas, WC com nova porta e um melhor isolamento acústico), a continuidade do uso da estrutura em duralumínio, mais rígida e leve, e novas janelas. A disposição das poltronas também foi um diferencial, em função da harmonia entre o espaçamento das mesmas e a colocação das janelas. Nisso, cada passageiro, posicionado junto às janelas, alcançou acesso à abertura, sem ter uma coluna à sua frente, permitindo a ventilação e a visão externa.

O termo Dinossauro deixou de batizar os veículos em 1984 e então o nome Flecha Azul, apropriado para com o que o modelo proporcionava em termos de rapidez e harmonia com as cores que ornavam e exaltavam a sua beleza, passou a ser adotado pela transportadora.

Mais um detalhe a ser salientado é que a Viação Cometa passou a utilizar o mesmo número de série de cada novo veículo junto ao emplacamento, inédito para o momento, uma particularidade que diferenciava sua operação.

Em complemento à carroçaria, a Scania, parceira de longa data da Viação Cometa, inovou o segmento de ônibus rodoviários, naquela época, ao introduzir, em seu chassi K112 (tratava-se ainda de uma nova geração de veículos da marca naquele momento), a transmissão automática e computadorizada, importada e considerada um grande avanço tecnológico no meio. De início, o moderno sistema de troca de marchas caiu como uma luva na operação do Flecha Azul, pelo desempenho e economia apresentados.

As linhas estéticas do Flecha Azul marcaram época

Para promover seu novo ônibus, a transportadora enalteceu a sua tecnologia por meio de muita peça publicitária e até propaganda em TV, afinal, naqueles anos, os modelos rodoviários ainda não possuíam um conceito de modernidade que se distinguisse dentre o modal.

Os anos correm… e a operadora promoveu algumas alterações em termos de desenho externo (lanternas, altura e tamanho de para-brisa) e acabamento interno (atualização de poltronas), claro que sem perder o seu princípio estético. A mudança mais significativa foi na área de janelas laterais, em 1994, sendo que as mesmas ficaram no mesmo nível e as quatro primeiras poltronas no plano único do salão de passageiros.

Não é preciso lembrar que as suas qualidades se mantiveram no espírito de exposição do melhor ônibus em relação à competitividade do setor. Também, com a evolução do chassi Scania, um detalhe observado foi a substituição das rodas raiadas por modelos a disco utilizadas no transcorrer do tempo.  

A longevidade do modelo foi marcante dentro e fora da Viação Cometa, sendo que ele teve sua produção encerrada apenas no final da década de 1990 (com mais de duas mil unidades fabricadas), reconhecido, ainda, pela reputação muito positiva no mercado de segunda mão do transporte de passageiros (a carroçaria Dinossauro também fez sucesso, exaltada no mercado de usados).

A estima pelo Flecha, e claro, não se esquecendo do antecessor Dinossauro, fez com quem uma legião de fãs se formasse com o passar dos anos, alguns dos quais até indo além ao preservar, por conta própria, algumas unidades do veículo, como acervo particular. A própria Viação Cometa tem, sob o seu domínio, o último veículo produzido nessa versão, de 1999.

Obs. – Me perdoem se cometi algum erro ou deixei de mencionar determinado fato.

E, a história do modelo Dinossauro fica para uma outra oportunidade nesta longa viagem que trata do desenvolvimento do ônibus brasileiro.

Imagens – Anfavea/Vassily Volcov Filho, Setpesp, Tony Belviso, Scania, Reprodução material de divulgação Viação Cometa

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2 Comentários

  1. Avatar

    Tudo isto acabou, uma pena, pois a Cometa versão JCA não é nem a sombra do que era antes, como dizem que antigamente era Viação Cometa S/A hoje é só Cometa, empresa fadada ao fim, pois não tem mais qualidade nenhuma nos transportes, eu mesmo não viajo mais pela Cometa

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  2. Avatar

    O problema é que as pessoas leigas, com o passar dos anos, julgavam que os CMAs eram “ônibus velhos” por manterem as características externas básicas originais e muitas passaram a optar por concorrentes. Lembro de uma vez que presenciei um DD da Empresa Cruz sair quase lotado do terminal Tietê rumo a Araraquara, enquanto a Cometa pôs um Flecha Azul leito, com preço de convencional, em virtude da diminuição de passageiros.

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