O planejamento antes da revolução da eletrificação

Prudência e canja de galinha (incluo na lista o planejamento) não fazem mal a ninguém. Sob esse aspecto, é necessário observar algumas essencialidades para alcançarmos a tão ensejada transição energética dos transportes

Editorial

O constante aumento do consumo da eletricidade em nosso cotidiano, aliado aos fenômenos climáticos, tempestades, escassez de chuvas e aumento das temperaturas, faz com que surjam algumas dúvidas quanto ao sistema energético brasileiro, formado, em sua maioria, por usinas hidrelétricas (eólicas e solares ainda representam uma pequena proporção no todo), além de uma extensa rede de distribuição conectando todo o território nacional. Não esquecendo que usinas termoelétricas, ainda, estão presentes na geração de eletricidade.

Questões como: os investimentos para a ampliação da infraestrutura estão sendo realizados? Será possível garantir energia para todos os setores? Nossa capacidade instalada dará conta? A política energética está sendo tratada de modo sério e racional? Com a previsão de, cada vez mais, ventos e chuvas fortes estarem associados ao meio ambiente, toda a infraestrutura ligada ao setor será impactada de forma sensível? Há fragilidade no sistema que possa comprometer a distribuição de energia?

O mundo vive um momento de transformação em que pesa a urgência de sua descarbonização, visando a sobrevivência humana. Nele, há inúmeros setores que contribuem com as emissões poluentes, dentre os quais, o do transporte, que precisam passar por um processo que leve em consideração novas formas de produção, consumo e de mobilidade, para assim, promover uma “folga” ao meio ambiente.

Citando a mobilidade sobre pneus (coletiva e individual), ela vem se modificando com a adoção de tecnologias limpas de tração, sendo que a principal bandeira para a redução da poluição oriunda desse setor recai sobre a eletrificação.

Para muitos, é um caminho sem volta. No entanto, estamos preparados para esse novo contexto? Vejamos o caso do transporte coletivo urbano que vem sendo tratado com urgência pela troca da matriz energética. O ônibus é o modelo escolhido para que a propulsão elétrica seja predominante. Há interesses em jogo para que o modal urbano seja, totalmente, com tração elétrica.

Ouvindo uma fonte que está ligada, diretamente, à operação (avaliação) com os ônibus elétricos, ela faz sua ressalva em meio ao que está sendo preconizado quanto ao que se quer para mudar a cultura do transporte e sua implicação frente ao meio ambiente. O projeto local, sem contar com o apoio da gestão pública, tem sido bem complexo, motivado por diversos problemas iniciais (após um ano de operação com três veículos). Problemas com a infraestrutura de recarga elétrica (isso com apenas um carregador), com as baterias (teve até troca) e na suspensão dos veículos foram aspectos comentados. A expectativa sobre a autonomia, também, não foi cumprida – de 150 km prometidos, para até 120 km atuais.

Para esse operador, o processo de eletrificação foi açodado, sem planejamento quanto a infraestrutura. “Nossa experiência não tem sido boa”, comentou ele. Quanto a viabilidade econômica, é preciso pensar nos investimentos iniciais e, não somente no custo operacional. “Hoje, a conta não fecha se pensarmos somente em operação. Como será que esse custo de capital será remunerado? O valor de investimento na tecnologia é muito alto. Um ônibus custa três vezes mais que a versão a diesel”.

Ainda, segundo o empresário, o plano de descarbonização nos sistemas de transporte não tem mais volta quanto a questão da eletrificação. A dúvida que fica é, será que a evolução dos modelos de tração não implicará, de forma negativa, em todo o investimento necessário se falamos, hoje ,em ônibus 100% a baterias? “E se fizermos um enorme esforço e investimento em recarga elétrica do tipo plug-in e, alguns anos depois, a tecnologia vier a ser a das células a combustível (hidrogênio), que poderá ser mais vantajosa em termos técnicos e econômicos? Se eu quiser adaptar minha operação (com uma frota em torno de 400 veículos), hoje, somente com veículos elétricos a baterias, terei que investir entre R$ 40 milhões e R$ 50 milhões na garagem. Eu perderei tudo isso daqui a 10 anos, se outra tecnologia prevalecer?”, analisou ele.

Se olharmos para os recarregadores elétricos, veremos que os preços são altos. Alguns valores, estimados, de modelos com cargas entre 120 kW e 180 kW, ficam entre R$ 270 mil e R$ 350 mil, bem salgado, neste momento, sendo que, apenas, uma unidade dá conta de dois veículos em um tempo que pode chegar a quatro horas.

Esse mesmo operador observou que, além do olhar para o plano de descarbonização veicular, é preciso, até mesmo antes disso, alcançar eficiência operacional para os ônibus de maneira a dar aos passageiros maior velocidade em seus deslocamentos, por intermédio de corredores exclusivos que ofereçam qualidade aos serviços. “Precisamos atrair o passageiro para o transporte público com a qualificação dos serviços. De nada adiantará eu ter que fazer grandes investimentos em frotas elétricas se eu continuar perdendo o meu cliente para outros modais de transporte”.

Outro operador consultado por este editor reforça as palavras anteriores, dizendo que a definição do projeto é, antes de tudo, essencial, pois o que está em jogo em todas as garagens de ônibus é a distribuição energética de média tensão, capaz de recarregar até 50 ônibus elétricos. “Não basta, simplesmente, colocar o ônibus nas ruas. A complexidade é grande. Se quisermos migrar para a alta tensão, além do tempo exigido para isso, deve-se pensar nos investimentos, que não são baixos. Também temos que saber o quanto poderá ser utilizado da capacidade energética da rede que abastece as garagens. Enfim, essas mudanças precisam de respostas adequadas ao que está sendo demandado”.

Para ele, a questão da eletrificação deveria ser adequada ao longo do tempo e não uma imposição política, correndo em paralelo com outros modelos de tração limpa, como os biocombustíveis, para uma melhor avaliação visando o transporte sustentável. “Os desafios são enormes em virtude das condições em que o transporte é realizado, já que a eletrificação vem para ficar. Porém, faço uma observação. O futuro do transporte deve explorar as energias renováveis”, mencionou.

Voltando para o tema do planejamento, esse fator é determinante no sucesso da referida transição energética e, o fornecimento da eletricidade para o setor de transporte coletivo, é fundamental para que as operações possam ser cumpridas. Mas, para isso acontecer, toda a rede de distribuição deverá passar por uma remodelação de capacidade e tensão junto à região das garagens e estações de recargas. Sem isso, corremos, novamente, o risco de ter apagões extras, o que causará descontentamento e perdas em diversos setores em nosso cotidiano. E, sem investimentos, sejam públicos ou privados, como se sabe, o intento estará desprovido de qualquer ação estratégica que leve a eficiência operacional.

Para os muitos gestores públicos municipais, colocar ônibus elétrico em operação nos sistemas das cidades remete a status, algo como referência ao bom desempenho e qualificação dos serviços. Eles, ainda, levam em consideração os lobbys dos formadores de opinião que já traçaram um plano de substituição a curto e médio prazo sem pensar no que pode ocorrer se não houver o planejamento.

Porém, os atuais ônibus urbanos, a diesel, não são os verdadeiros vilões no assunto meio ambiente, como muitos querem. Em termos de poluição local, em relação a óxido de nitrogênio e material particulado (envolvidos diretamente com a saúde pública), os ônibus dos últimos 10 anos emitem muito pouco e passam por constantes avaliações dos programas de despoluição (controle e redução das emissões). Além disso, as renovações das respectivas frotas, com a troca das antigas gerações de motores por novas que poluem menos ainda (Euro VI), contribuem para um transporte mais limpo.

Um dado interessante. Há uma estimativa que a frota de ônibus no Brasil esteja na casa de 100 mil unidades, volume que utiliza três bilhões de litros de diesel por ano para se movimentar, num volume total de 62 bilhões consumidos anualmente no País, com predominância do transporte de cargas. Quem são os verdadeiros poluidores?

Este editorial não tem a pretensão de ser contra o ônibus elétrico. Muito pelo contrário, pois aposta numa operação urbana racionalizada que utilize esse tipo de veículo. Contudo, quer chamar a atenção para que sejam avaliados todos os aspectos relacionados com o novo modelo de transporte, num contexto em que as respostas sobre as principais dúvidas que acompanham o veículo e seu uso sejam expressadas de forma sensata e prática.  

Assim como outros setores da gestão pública, o transporte coletivo precisa ser levado a sério e não pode ser um mero agente de uma plataforma governamental em detrimento ao programa de estado.

Imagem – Revista AutoBus

4 Comentários

  1. Avatar

    Também precisa estar preparada a estrutura de segurança equipada e treinada para incêndios em veículos elétricos com baterias. Além dos acidentes que já aparecem no noticiário precisamos nos lembrar da quantidade de veículos que são propositalmente incendiados em nosso país e que com a nova tração dificultarão o combate às chmas e explosões e isso atrairá ainda mais aos criminosos.

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    • Antonio Ferro

      Sim Cláudio, mas isso é outro aspecto, para outro artigo. Obrigado pelo comentário.
      Abc

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  2. Avatar

    Parabéns pelo texto. Irresponsavelmente muitos pensam que eletrificar o transporte público reduz-se à compra do e-bus! Fala-se em eletrificação e até em tarifa zero e mal conseguem construir um metro de corredor exclusivo!! A eletrificação nao deve e não pode ser pautada pelo calendário eleitoral. Ela requer anos , talvez décadas mas não meses! Ela requer garantias concretas das três instâncias de governo. Ela requer sobretudo respeito aos que dependem e aos que operam os transportes públicos.

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    • Antonio Ferro

      Prezado Jurandir, tudo bem?
      Com o seu vasto conhecimento, fiquei feliz por você ter observado o meu editorial. Sim, antes de tudo, não podemos queimar etapas na implantação de um transporte de qualidade, previsível e racional.
      Obrigado.
      Abc

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