O QUE A MOBILIDADE URBANA PODE FAZER PARA MITIGAR OS EFEITOS DO AQUECIMENTO GLOBAL?

As estratégias a serem adotadas no campo da mobilidade urbana não podem ser território para a produção de mais desigualdade social

Por Wesley Ferro Nogueira, economista e secretário-executivo do Instituto MDT

Enfrentamos um processo contínuo e acelerado de aquecimento global e até mesmo os
negacionistas têm sentido na pele, literalmente, o aumento da temperatura no planeta e a
ocorrência cada vez mais frequente de eventos extremos, como secas, inundações,
derretimentos de áreas polares, etc. As temperaturas elevadas não são mais exclusividade
apenas das regiões localizadas abaixo da linha do Equador, mas também estão castigando países onde o clima era muito mais ameno e caracterizado por estações muito bem definidas.

Aqui, no Brasil, por exemplo, estamos praticamente restritos a duas estações do ano: uma muito
quente e outra não tão muito quente, com a seca alcançando até mesmo a região amazônica.
O setor de transportes tem contribuído de forma direta para o aprofundamento da crise de
mudanças climáticas e de aquecimento do planeta, uma vez que o seu motor de impulsão ainda
é baseado em combustíveis fósseis responsáveis por grandes emissões de materiais poluentes,
como o dióxido de carbono (CO2). Segundo o Fórum Internacional do Transporte (ITF, sigla em
inglês), que integra a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a
área de transportes representa 20% das emissões anuais de CO2 no mundo, com os automóveis
contribuindo com quase metade desse valor.

Os países e os seus governos centrais têm responsabilidade direta no enfrentamento dessa crise
global, seja assumindo efetivamente o cumprimento de metas pactuadas em acordos
internacionais para a redução de emissões, ou garantindo linhas de financiamento que possam
ser direcionadas para priorizar e fortalecer os modais ativos, o transporte público e o fomento à
mudança da matriz energética dentro da mobilidade urbana, substituindo combustíveis fósseis
por fontes limpas e renováveis, mas com foco principal no atendimento do interesse coletivo.
No Brasil, a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) já aponta, desde 2012, quais
deveriam ser as diretrizes visando à promoção de mudanças dos paradigmas em nosso modelo
de desenvolvimento para as cidades, que se concentrariam em três eixos principais: redução do
protagonismo do transporte individual motorizado dentro do espaço urbano; ampliação e
fortalecimento dos modais ativos e reestruturação e qualificação dos sistemas de transporte
público. Entretanto, mesmo com a receita já conhecida há 11 anos, não avançamos muito em
direção à uma mobilidade urbana sustentável.

A eletromobilidade é um caminho irreversível dentro do processo de redução de emissões para a
mitigação dos impactos do aquecimento global e das mudanças climáticas. Entretanto, esse
novo cenário não pode ser conduzido sob o viés do desenvolvimento focado apenas em novos
modelos de automóveis, com o incremento de uma diversidade de recursos tecnológicos, que
serão ofertados e acessíveis somente à uma parcela privilegiada da sociedade, segregada por
seu alto nível de renda e com capacidade de investimento independente do valor final do
produto. A mudança da matriz energética dentro da mobilidade urbana deve ser pautada por
programas de fomento com recursos públicos e privados que, necessariamente, se concentrem
no financiamento dos sistemas de transporte público coletivo, promovendo progressivamente a
descarbonização de frotas de ônibus e ofertando alternativas para a redução de custos na
operação de sistemas sobre trilhos.

Atualmente, já há um vasto cardápio de opções em discussão para viabilizar a descarbonização
no setor de transportes, a partir da eletromobilidade, como o uso de baterias de lítio, híbridos,
células a hidrogênio, etc, ou mesmo os biocombustíveis, como o nosso conhecido etanol, com
menor produção de emissões. Qualquer alternativa a ser implementada necessita
fundamentalmente da sua viabilização técnica e financeira, por exemplo, para vir a ser
implementada nos sistemas de transporte público, além da exigência da obrigatoriedade de que
a (ou as) tecnologia (s) definidas sejam parte integrante de uma cadeia produtiva que se baseia
integralmente em processos produtivos alinhados com a descarbonização.

Aqui no Brasil há várias correntes que defendem o uso mais intensivo do etanol até mesmo
dentro dos sistemas de transporte público, a partir de modelos híbridos que combinariam o
biocombustível com motores elétricos. Avalia-se que essa poderia ser uma das alternativas
fomentadas por linhas de financiamento de agentes públicos, na perspectiva do fortalecimento
de uma atividade econômica nacional e sobre a qual já detemos conhecimento. Entretanto,
algumas condições deveriam ser consideradas como premissas no caso de uma decisão para
ampliação do investimento na fabricação do etanol, como, por exemplo, a obrigatoriedade da
produção de cana-de-açúcar se basear no cumprimento rigoroso da legislação laboral,
respeitando os direitos dos trabalhadores, e não ser cenário da reprodução de condição de
trabalho análoga à escravidão, situação não tão incomum, por aqui, em vários setores.

Não há dúvida de que os combustíveis fósseis são fortes emissores de materiais poluentes que
contribuem para o aquecimento global e que, por isso, precisam ser substituídos. Nesse sentido,
considerando que o transporte individual motorizado não é a referência dentro de um projeto de
mobilidade urbana sustentável em nenhum lugar do mundo, não basta apenas a substituição da
matriz energética, mas é necessário repensar o papel do automóvel dentro do espaço urbano,
mesmo que a sua energia motriz seja limpa, uma vez que devem ser priorizados os modais
ativos e o transporte público, sendo que é este último quem exerce um papel estruturador
dentro do território, servindo como eixo indutor do desenvolvimento socioeconômico e
contribuindo para reduzir as desigualdades.

Aqui no Brasil, uma alternativa que se desenha como estratégia para o enfrentamento do
aquecimento global seria com a instituição do Sistema Único de Mobilidade Urbana (SUM),
proposta que o Instituto MDT apresentou inicialmente em 2017 e que agora conta com uma
estrutura definindo os seus fundamentos. O ambiente do SUM pode criar as condições
necessárias, a partir de um arranjo e uma pactuação institucional interfederativa, para a
implementação efetiva de uma política pública de mobilidade urbana integrada, estabelecendo
metas nacionais com indicadores claramente definidos, submetendo os entes ao cumprimento
de objetivos como, por exemplo, o aumento da participação dos modais ativos e do transporte
público na matriz modal de cidades e regiões metropolitanas, ao mesmo tempo em que regula o
papel do transporte individual motorizado, contribuindo para a redução de externalidades
negativas; com a fixação de prazos e metas para a redução de materiais poluentes dentro do
setor de transportes, como o CO2, NOx e particulados, vinculando o acesso a novos recursos e a
mudança de patamar dentro do SUM ao alcance desses objetivos e com o estabelecimento de
fontes nacionais de financiamento e a fixação de percentuais mínimos nas dotações
orçamentárias dos entes federados para garantir o investimento em infraestrutura voltada aos
modais ativos e aos sistemas de transporte público, além do custeio da operação.

O SUM também pressupõe o fortalecimento da gestão pública para o aumento da capacidade
técnica de planejamento, execução e acompanhamento da política pública; o fomento à
pesquisa, visando ao desenvolvimento de tecnologias limpas que contribuam para a transição
energética e valorizem a indústria nacional; a inserção da participação social como elemento
essencial de construção e avaliação da execução da política de mobilidade, além de patrocinar a
defesa dos seus fundamentos centrados em uma lógica sustentável; a construção de um
arcabouço legal de suporte para criar as condições necessárias visando apoiar estados e
municípios na adoção e implementação de instrumentos de gestão (já previstos na PNMU desde
2012, como a política de estacionamento), que, ao mesmo tempo, em que regulariam a
participação do automóvel dentro das cidades e regiões metropolitanas, também gerariam
recursos novos para o financiamento dos modais ativos e do transporte público, entre outras
possibilidades.

Por fim, merece destaque também que, mesmo reconhecendo a extrema urgência na adoção de
instrumentos que mitiguem os impactos das mudanças climáticas e do aquecimento global, as
estratégias a serem adotadas no campo da mobilidade urbana não podem ser território para a
produção de mais desigualdade social, aprofundando ainda mais o fosso entre as camadas da
população e impedindo a universalização do direito de acesso à cidade, principalmente dos
segmentos mais vulneráveis, o que vai na contramão daquilo que está expresso na Política
Nacional de Mobilidade Urbana e que seria a premissa básica do Sistema Único de Mobilidade
Urbana (SUM).

Imagem – Divulgação

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