Por que o subsídio ao transporte público gera indignação, mas outros apoios monetários são considerados normais?

Não é compreensível que o subsídio ao transporte público e aos grupos em situação de vulnerabilidade não sejam aceitos por determinados setores

Por Wesley Ferro Nogueiraeconomista e secretário executivo do Instituto MDT

Desde 2017, quando apresentou o projeto “Pensar o transporte público na cidade planejada para o automóvel”, que o Instituto MDT tem defendido que o Governo do Distrito Federal (GDF) promoveu uma decisão acertada quando, em 2011, na construção do edital de licitação do Sistema de Transporte Público Coletivo (STPC/DF), decidiu estabelecer a separação entre a tarifa de remuneração (técnica) e a tarifa usuário como referência para o novo modelo, introduzindo a figura do subsídio público como mecanismo de cobertura de eventuais déficits apurados na operação, toda vez que a receita arrecadada com a venda das passagens fosse insuficiente para garantir a cobertura do custo total, exigindo, assim, o aporte do tesouro para a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dentro do serviço.

Inicialmente adotado somente no Distrito Federal e no município de São Paulo, o subsídio público se mostrou vital para a sustentação dos sistemas de transporte público durante o período crítico da pandemia, quando houve uma retração assustadora na demanda do serviço, e a ação do poder público foi determinante para que a oferta fosse garantida, ao contrário da realidade enfrentada por todos os outros municípios que não pactuaram esse modelo. Atualmente, entretanto, o aporte de subsídio público passou a representar a realidade de uma parcela expressiva de municípios brasileiros, mas o quadro ainda continua muito grave naqueles outros sistemas que dependem exclusivamente da receita tarifária arrecadada nas catracas do transporte público, como é, infelizmente, o caso do serviço que opera no Entorno do DF.

O subsídio público é um instrumento amplamente utilizado em várias cidades ao redor do mundo e aqui foi corretamente estabelecido na Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), introduzido pela Lei Federal no 12.587/2012, e induz a responsabilidade dos governos com o financiamento do transporte público como uma das políticas prioritárias dentro do seu orçamento, reconhecendo-o efetivamente como um direito social que exige garantia para o usufruto por parte da sociedade, também reduzindo a pressão para que as variações constantes nos insumos possam ser transferidas de forma injusta aos usuários do sistema.

Defender o subsídio dentro dos sistemas de transporte público, obviamente, não pressupõe fechar os olhos para a falta de transparência de dados, informações e processos dentro da gestão desse serviço ou se acomodar com uma injustificável ausência da participação social no planejamento e na execução dessa política. Ao contrário, é a inserção do controle social e a promoção da transparência detalhada de cada centavo investido no sistema de transporte público que contribuirá para afastar dúvidas e ajudará na compreensão da importância do subsídio para a sua sustentação e, nesse sentido, aqui no DF ainda temos muito a fazer, começando pelo entendimento do processo recorrente das revisões das tarifas técnicas.

No DF, no imaginário coletivo, o subsídio é sempre associado à ideia de uma transferência direta de recursos do Governo para as empresas que operam no STPC/DF, que se apropriariam desse montante repassado, em vez da compreensão de que os valores aportados visam fortalecer o papel relevante do sistema de transporte público dentro do território, seja assegurando o pagamento das justas gratuidades, ou a garantia da cobrança de tarifas públicas próximas da capacidade de pagamento dos usuários, e não a aplicação de uma tarifa com cobertura do custo real, além da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro. O modal metrô, que é uma operação sob a responsabilidade do governo, também não conseguiria sobreviver sem o subsídio público, uma vez que a receita gerada com a venda de passagens é insuficiente para a manutenção do sistema sobre trilhos (segundo o Plano de Negócios 2023 do Metrô DF, o subsídio representou 46,6% do financiamento do sistema em 2021, aumentando para 59,7% em 2022 e com previsão de ficar no patamar de 53,4% em 2023).

Segundo dados apresentados pela Secretaria de Transporte e Mobilidade do Distrito Federal (Semob), na última reunião do Conselho de Transporte Público Coletivo, o custo total do STPC/DF operado por ônibus está no âmbito de R$ 2,8 bilhões (período de junho/2022 a maio/2023), onde o subsídio já representa 70% da cobertura desse montante, seja para o pagamento das gratuidades (25,6%) ou para o complemento relativo ao déficit tarifário (44,4%), com a receita gerada pelas tarifas contribuindo com somente 30% para o financiamento desse custo.

Ainda segundo as informações disponibilizadas pela Semob, a tarifa real do STPC/DF (aquela que deveria ser praticada), estaria na faixa de R$ 8,43, enquanto que a tarifa média relativa à divisão da arrecadação nas catracas entre todos os acessos dos usuários (o que inclui as gratuidades) seria de apenas R$ 2,52, o que exige o aporte de um subsídio público correspondente a R$ 5,91 para cada passageiro transportado dentro do sistema, e que significou R$ 1,9 bilhão para o período referido acima.

Ainda insistindo na tese de que a transparência tem que ser a regra, também não há como negar a importância do subsídio público para o STPC/DF. Nesse sentido, não há como concordar com os ataques frequentes e as manifestações de indignação de segmentos da sociedade, muitas vezes representados por não-usuários do sistema de transporte público, que se opõem de forma raivosa ao aporte de subsídios por parte do GDF, e que muitas vezes me fazem lembrar dos mesmos argumentos apontados quando o Governo Federal resolveu apostar mais incisivamente em programas de transferência de renda para camadas vulneráveis da população, como estratégia para o combate à extrema pobreza e à pobreza, pautado no velho discurso de que “não se pode dar o peixe, tem que ensinar a pescar”.

Não é compreensível que o subsídio ao transporte público e aos grupos em situação de vulnerabilidade não sejam aceitos por determinados setores, mas que não há reação ou mesmo que ocorra um nível de normalização em relação a outras formas de aportes monetários por parte dos governos, ainda que pelo não exercício da cobrança de faturas, e aqui quero tratar especificamente dos privilégios concedidos aos automóveis dentro do DF.

Além da existência de um sistema viário farto e generoso destinado à circulação do transporte individual motorizado, que conta com investimentos frequentes e manutenção em dia, ao contrário do que se observa em relação às calçadas, rede cicloviária e infraestrutura exclusiva para ônibus, a oferta de estacionamento público para automóveis dentro do DF, sem a cobrança de qualquer valor por isso, é algo que impressiona muito e, nesse caso, a indignação fica quase sempre restrita aos grupos de ativistas da mobilidade urbana sustentável.

Recentemente, um ótimo documento técnico publicado pela Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), denominado “Avaliação de investimentos em mobilidade urbana com recursos de cobrança de estacionamento no meio-fio”, que dá sequência a trabalho anterior do mestre Eduardo Vasconcellos, faz um recorte e mostra o tamanho do subsídio concedido aos automóveis dentro do DF, em se tratando apenas deste tópico. Segundo esse estudo, a frota parada diariamente ao longo do meio-fio é estimada em mais de 1,1 milhão de veículos, que ocupam uma área linear de 1.768 km e representam um total de mais de 3,3 milhões de horas de tempo de estacionamento sem pagar nada por isso.

Segundo esse estudo técnico, se fosse considerado um valor médio de R$ 4,00/hora, o estacionamento ao longo do meio-fio geraria uma receita diária de R$ 13,3 milhões ao tesouro do DF, representando ao final do período de um ano (considerando 220 dias úteis), a expressiva cifra de R$ 2,9 bilhões, que poderiam ser reinvestidos no fomento à mobilidade urbana sustentável, assim como recomenda a própria PNMU, seja para o barateamento ou mesmo a supressão total da tarifa ou para a qualificação das redes de circulação a pé ou cicloviária.

Não vejo a bancada dos críticos dos subsídios ao sistema de transporte público se posicionar contrária a um subsídio tão absurdo e anti-econômico quanto esse concedido aos proprietários de automóveis. Ao contrário, a reação violenta de oposição aconteceu somente quando o GDF trouxe para o debate a proposta de implantação do Projeto Zona Verde que, em que pese alguns equívocos na concepção original da modelagem, a iniciativa estava alinhada com a PNMU, que propõe a utilização de instrumentos de gestão urbana, como a política de estacionamento, para a redução do papel do transporte individual motorizado dentro da matriz modal e o fortalecimento dos modais ativos e do transporte público dentro das cidades.

Avalio que não há mais possibilidade do GDF renunciar à geração potencial de receitas que estão associadas diretamente ao uso do automóvel, como a relativa ao uso gratuito do espaço público para estacionamento. Em se tratando do financiamento do sistema de transporte público, a captação de novos recursos ajudaria a reduzir o impacto desse ônus que hoje é compartilhado somente entre o tesouro e os usuários, incorporando o restante da sociedade nesse processo de custeio, o que é recomendado pela política nacional. O subsídio aos automóveis é também pago por aqueles que nem têm carro. Nada mais justo que a fatura do transporte público seja repartida com todos, pois esse serviço é estratégico para a cidade, seja do ponto de vista econômico, social, ambiental, segurança viária, etc.

A minha expectativa é de que os atuais críticos do subsídio ao sistema de transporte público sejam sensibilizados e possam assumir a bandeira da defesa da cobrança do estacionamento público, até mesmo para que os novos recursos gerados possam desonerar o comprometimento do orçamento do GDF com o financiamento do transporte público, liberando-o para o aporte em outras importantes políticas governamentais. É preciso avançar em direção à transparência do sistema e à consolidação do transporte público como instrumento de inclusão social.

Imagem – Arquivo pessoal

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