*Por Humberto Maciel
A ambliopia, também chamada de “olho preguiçoso”, é uma condição que acomete crianças nas quais o globo ótico ainda está em formação. Por algum motivo, um dos olhos passa a se desenvolver de maneira diferente do outro e aos poucos o cérebro passa a demandar cada vez menos do olho com desempenho inferior. E, o que acontece em seguida, é que o olho passa a ficar cada vez mais sem função, até que o cérebro o ignora completamente.
Para tratar essa deficiência, a recomendação é fazer com que o cérebro se obrigue a usar o olho prejudicado e faça com que ele se desenvolva.
Sem ter estudado nada de medicina, o motivo de eu saber isso é porque fui uma dessas crianças com um olho tampado e o outro que se esforçava demais para enxergar.
Falo desse tema aqui e relaciono isso ao universo da mobilidade urbana por ter relido, há pouco tempo, o artigo clássico de T. Levit que fala da “miopia do marketing”. Ele descreve o processo na qual grandes organizações, reconhecidamente de sucesso daquele tempo, enxergavam o seu mercado como apenas uma parte do que era a verdade. Perderam a “Big Picture” (ou o cenário mais amplo) e se limitaram a perseguir os seus mesmos consumidores, com seus mesmos produtos, não reconhecendo os produtos substitutos e complementares que foram se aproximando, até que, tal como a Kodak, a Greyhound (empresa norte-americana de transporte de passageiros) e as montadoras de veículos americanas, acabaram enxergando de camarote a perda de seus mercados para concorrentes que estavam um pouco fora de seus campos de visão.
Me perguntei ao reler o texto, depois de muitos anos, se era isso que estava se passando com o setor de transportes urbanos, apesar de tantos anos de separação da onda de inovações que justificou o estudo de Levit.
Afinal, tudo parece estar fora do eixo, pois a sociedade vê menos valor nos serviços de transporte público do que este parece gerar, o poder concedente está sempre às voltas com o peso das tarifas, ora nos seus cofres, ora nos bolsos dos seus eleitores. Por outro lado, os aplicativos de serviços individuais de transporte são vistos como inovações disruptivas, com tudo que elas têm de vantagem por atender uma demanda desconhecida e valorizada, mas que lida com o limite destrutivo de estruturas essenciais à sociedade tal como ela existe hoje.
Estamos preparados para viver em uma sociedade tão diferente da atual, sem nos preocupar se ela será melhor ou pior?
São inegáveis os benefícios do serviço de aplicativos “on demand” (sob demanda), “single rider” (privado), “unscheduled” (sem rotas fixas). Mas, a verdade é que estamos com nossa visão sendo desenvolvida ainda e se os olhos não forem corretamente estimulados, um dos dois pode ser seriamente prejudicado, de maneira irreversível, configurando uma limitação importante e vital para o campo de visão como um todo (leia-se – mobilidade urbana inteligente e sustentável).
A meu ver, e posso estar errado, apesar de tantos anos trabalhando e estudando o tema, entendo o transporte público, com todas as suas tecnologias e modais, como esse olho preguiçoso que se esforça, porém sem o benefício sistêmico do tratamento correto, que não florescerá e nem será produtivo.
Podemos fazer diversas analogias com os termos ligados à descrição inicial da ambliopia. E, podemos identificar os papeis e funções dos elos desse sistema tão integrado e dependente, quanto o corpo humano e tão complexo e produtivo relacionado a atividade cerebral.
A mobilidade urbana sustentável e inteligente é como o campo de visão ampliado, com cores vivas, atuando como um estímulo inegável aos outros sentidos. A partir da superação de barreiras físicas de mobilidade, muitas possibilidades se abrem. São comprovadamente identificadas relações estreitas entre a mobilidade social, o grau de escolaridade, o acesso a postos de trabalho superiores e o grau de mobilidade urbana sustentável. A atratividade urbana para investimentos, atividades ligadas a empreendedorismo e serviços se beneficiam de sistemas integrados e inteligentes de transportes.
O sistema de transportes requer visão sistêmica e monitoramento contínuo. Os processos de evolução e desenvolvimento se dão a partir de ações pontuais, mas que têm reflexo no sistema como um todo.
O transporte de pessoas é um elemento chave neste sistema, mas sofre interferência de outros elos desta intrincada estrutura em rede que envolve a sociedade, o meio ambiente, as instituições, além dos fatores exógenos e extemporâneos.
A ciência não avança destruindo estruturas e sim reelaborando-as e provendo inovações e desdobramentos. Apesar de algumas inovações terem acontecido dessa forma, há um preço alto a pagar.
Tal como na ambliopia, em que um olho não funciona tão bem quanto seria esperado, o transporte público é merecedor de muitas das críticas que recebe. Ele não enxerga em detalhes a dinâmica da maioria dos centros urbanos e muitas vezes responde mais lentamente do que o esperado às mudanças sociais e evoluções do tecido urbano.
A segurança, o equilíbrio, a adaptabilidade, a previsibilidade e até mesmo o conforto são afetados pelo alcance e amplitude do nosso campo de visão. Em oposição às guias (tapos) que eram impostas aos animais de carga para que enxergassem apenas uma parte do cenário, o amplo campo de visão representa a liberdade, a agilidade e a eficiência.
Quando não se enxerga o cenário inteiro, é muito mais difícil tomar decisões, reagir com rapidez e atuar com precisão.
Na mobilidade urbana, o campo de visão se relaciona intimamente com a sustentabilidade em suas dimensões elementares: a dimensão social, a dimensão ambiental e a dimensão econômica. A sustentabilidade do transporte urbano pode ser abordada a partir de sete diferentes variáveis que se agrupam em cada uma das suas dimensões elementares.
Na dimensão econômica, a variável “qualidade da integração” representa a amplitude desse campo de visão que por sua vez, se relaciona com a dimensão social no que diz respeito à adequação às necessidades” dos clientes e que na dimensão ambiental é representada pelas “iniciativas ecoeficientes”.
A mobilidade sustentável se apoia na renovação do modelo, na integração intermodal, na ampliação da diversidade tarifária e na sua integração. A atuação em rede, tão propagada nos setores ligados à comunicação, tecnologia e saúde é pré-requisito para a construção de um sistema integrado, sustentável e inteligente de transportes urbanos como espinha dorsal da mobilidade sustentável e inteligente.
A utilização da tecnologia para a expansão dos horizontes do transporte é muito recomendada e os desafios para a adequação da oferta à demanda são tão complexos quanto numerosos.
* Mestre em administração de empresas, com MBA pela ESPM e pós-graduação em Business na U.C Berkeley Extension e em gestão de transportes pela Fundação Dom Cabral. É diretor de uma empresa de tecnologia para serviços de transportes, consultor e professor
Imagens – Arquivo pessoal e reprodução da internet
0 comentários