Por Wesley Ferro, economista e secretário-executivo do Instituto MDT
Em 2017, quando o Instituto MDT apresentou oficialmente, pela primeira vez, a proposta de criação de um Sistema Único de Mobilidade Urbana (SUM), estávamos sozinhos nesse processo e tínhamos mais dúvidas e perguntas do que propriamente respostas acerca do que seria esse modelo institucional que defendíamos. No ano passado conseguimos alguns importantes avanços e produzimos contribuições mais robustas a partir da publicação de documentos técnicos que trazem uma detalhada análise comparativa entre todos os sistemas únicos existentes no país e a fundamentação da implementação do SUM.
Felizmente, graças também ao esforço de outras organizações, pesquisadores e ativistas, o tema do SUM vem sendo difundido na sociedade, se tornando conhecido dentro de alguns segmentos, principalmente no campo da própria mobilidade urbana, mas ainda há um longo caminho para que esta proposta alcance o conjunto da população, se institucionalize e entre definitivamente na agenda política do país. Não tenho dúvida de que o processo de preparação, debate e de realização da 6ª Conferência Nacional das Cidades, este ano, vai ser um forte impulsionador do Sistema Único de Mobilidade Urbana no país.
No entanto, em que pese essas valorosas contribuições que ajudaram a disseminar a proposta do SUM, me preocupa o fato de que alguns grupos ainda insistem no entendimento e na defesa da tese de que o Sistema Único de Mobilidade Urbana viria para, prioritariamente, assegurar a implementação de um Programa de Tarifa Zero em todo o país. Essa visão reducionista de um Sistema é um equívoco. Nenhum programa específico isolado deve ser o eixo orientador do SUM, assim exatamente como também não foi no SUS e no SUAS.
Após ter sido inicialmente inserido na Constituição Federal, em 1988, o Sistema Único de Saúde (SUS) começou a se consolidar a partir da promulgação da sua Lei Orgânica – no 8080, em 1990, e ainda se encontra em processo de organização. No final dos anos 80 e começo dos 90, por exemplo, o país convivia com graves problemas de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST), em particular a AIDS, e o SUS não se organizava sob o viés exclusivo de estabelecer o enfrentamento desses problemas. As premissas do SUS se baseiam na lógica de um processo sistêmico, representando um conjunto de ações e serviços de saúde, que é reconhecida como um direito fundamental do ser humano e dever do Estado. O Programa DST/AIDS, assim como muitos outros, integram a estratégia da política nacional de saúde, que é quem orienta o SUS.
O mesmo processo foi reproduzido no Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que foi instituído por meio da Lei Federal no 12.435/ 2011. O Programa Bolsa Família (PBF) é a maior iniciativa estatal de transferência de renda em todo o mundo e no ano de 2023 representava 63% do orçamento total do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social. O SUAS viabilizou a implementação do PBF, por exemplo, a partir da efetivação de uma rede socioassistencial com capilaridade em todo o país para o cadastramento e a busca ativa das famílias em situação de vulnerabilidade, mas a sua essência se baseia na implementação de uma política global de assistência social que também é obrigação do Estado e que visa a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice.
O objetivo central do SUM deve ser o de estruturar a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), garantindo o alcance dos objetivos, princípios e diretrizes que já estão expressos desde 2012 na Lei Federal no 12.587; de estabelecer uma atuação uniforme de todos os entes no país, com poder descentralizado, mas sob a coordenação federal; de organizar um arranjo institucional interfederativo que assegure, no mínimo, a fixação de dotações orçamentárias e o aporte de recursos públicos por cada ente, além de viabilizar receitas complementares para o financiamento das ações; instituindo fundos públicos para concentrar os recursos arrecadados, que devem ter destinação exclusiva para a mobilidade, sob a gestão colegiada com a participação da sociedade e com uma fonte nacional de recursos financeiros.
O SUM deve ser instituído para garantir uma mobilidade urbana sustentável, que promova o alcance do direito de acesso universal à cidade, e não vinculado ao padrão de renda como é hoje, tendo como premissas redes integradas, eficientes e não poluentes, baseada em modelo multimodal, mas tendo os sistemas de transporte público qualificados como eixo estruturador, também fundamentada em uma matriz modal onde as viagens ativas assumem a representatividade que nunca tiveram e com a fixação de metas nacionais para a redução dos deslocamentos feitos através do transporte individual motorizado nas cidades, visando à mudança de paradigma (podendo estabelecer, por exemplo, a previsão futura de chegada aos 25% da matriz).
Não tenho dúvida de que o SUM pode construir um cenário onde os recursos financeiros para o custeio da operação dos sistemas de transporte público e o tão necessário investimento em infraestrutura para projetos de mobilidade urbana estejam equacionados, sem a dependência exclusiva de aportes originários das dotações de orçamentos públicos, mas com fluxo de diferentes fontes. Consolidada essa realidade, estarão criadas as condições objetivas até para a implementação de um programa universal de tarifa zero em todo o país.
No entanto, um Programa de Tarifa Zero deve estar, necessariamente, vinculado à PNMU e às estratégias do Sistema Único de Mobilidade Urbana, tendo um transporte público qualificado, regular, eficiente, acessível e com prioridade no viário. A Tarifa Zero não é o indutor do SUM, é este, ao contrário, que poderá materializar a sua implementação no futuro e é, por isso, que devemos nos concentrar, neste momento, para garantir a viabilização deste Sistema.
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