Por Wesley Ferro Nogueira – economista e Secretário Executivo do Instituto MDT
Há algum tempo venho chamando a atenção para a necessidade de estabelecermos uma reflexão crítica em relação às propostas que defendem a implantação da Tarifa Zero (TZ) nas cidades do país, alertando para o fato de que esse Programa não pode estar lastreado apenas por visões carregadas de fortes doses de paixão ou apenas panfletárias, e sem conexão com um conjunto de elementos essenciais que não podem ser desconsiderados na discussão deste tema. Como essa minha visão nem sempre encontra boa acolhida junto a determinados segmentos, sempre me adianto para explicar que, em hipótese alguma, sou contrário à TZ nos sistemas de transporte público, mas que a oposição se concentra na forma como esse debate é conduzido e quando ele simplesmente desconsidera o contexto.
O Programa Tarifa Zero não pode ser interpretado como uma ação isolada, que possui carreira solo e independente, sem qualquer submissão e vinculação à Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) e aos planos locais de mobilidade (PlanMob), como frequentemente tem sido visto. Ao contrário, ele deve integrar e reforçar a estratégia da sustentabilidade, garantindo, junto com outros instrumentos, a priorização e a qualificação dos sistemas de transporte público coletivo e dos modais ativos, ao mesmo tempo em que orienta o processo de desestímulo ao uso do transporte individual motorizado dentro das cidades.
Nos projetos de TZ implementados nas cidades do país, salvo raríssimas exceções, a grande maioria foi baseada em decisão política unilateral e solitária do gestor público, com um olhar muito mais interessado nos pleitos eleitorais e sem a devida contextualização do cenário e das pressões que adviriam com o novo modelo. E em que pese os efeitos positivos gerados com o fim da cobrança de tarifas para segmentos em situação de vulnerabilidade, promovendo a sua inclusão social e garantindo o exercício da universalização do tão necessário direito de acesso à cidade, o que não é nada irrelevante, por outro lado nota-se a ausência de ações que contribuam para a qualificação dos sistemas de transporte público e a demarcação dos pilares de um projeto de mobilidade urbana sustentável.
Em várias experiências de Tarifa Zero existentes no país, a gratuidade universal vem sempre acompanhada de grande expansão da demanda (em Caucaia/CE, por exemplo, o aumento foi de 371%, segundo dados da publicação da NTU “Tarifa Zero nas cidades do Brasil”), mas a oferta da frota de ônibus não cresce em proporção que garanta uma atividade regular e de qualidade, e aí ocorre a degradação da prestação do serviço, com a piora da percepção de usuários em relação à temas como lotação, freqüência e cumprimento de horários. Pessoalmente, pude constatar diversas avaliações negativas de passageiros em duas cidades que contam com TZ, com críticas contundentes ao expressivo aumento do tempo de espera em paradas e superlotação nos picos, quando comparado com o modelo anterior, apesar do reconhecimento do benefício da isenção do pagamento de tarifas: em Luziânia/GO e Mariana/MG.
A pesquisa CNT de mobilidade da população urbana, que foi meu objeto de análise em artigo anterior, também promoveu uma investigação junto a usuários do transporte público de municípios onde foi implementada a Tarifa Zero e a avaliação não é muito positiva, reforçando a percepção de que não houve qualificação dos sistemas e inclusive desconstruindo mitos que estão diretamente associados ao objeto. Se 49,4% até reconhecem que existiu aumento da renda mensal, por outro lado, para 48,5% dos entrevistados não houve melhora do trânsito das cidades; 51,9% não acreditam que houve aumento de segurança no transporte público; 56,7% avaliam que ocorreu aumento de lotação; 59,8% informam que não teve redução do tempo de espera e outros 56,3% perceberam que não existiu ampliação de linhas e frotas.
Tallinn, capital do país europeu Estônia, durante muito tempo foi celebrada como a grande referência de cidade com TZ. Passados 10 anos da implantação do programa, a cidade aumentou o aporte de recursos para financiar a ação, mas a participação do transporte público na matriz modal tem se reduzido ao longo do tempo (caiu de 40% em 2013 para menos de 30% em 2022, segundo o site Statistics Estonia), inclusive junto às camadas de baixa renda, e não se conseguiu alcançar a meta fixada no Plano Nacional de Desenvolvimento de Transporte. Por outro lado, aumentou-se o número de viagens realizadas por automóveis pela população, também dentro até do quartil inferior de renda. Mesmo com tarifa zero universal, a participação do transporte público dentro da matriz modal cai e a do automóvel cresce.
Essa questão contradiz a inconsistência das crenças de que a implementação da TZ vai garantir, por si só, a migração de passageiros de veículos para o transporte público, o que reforça a convicção e a necessidade de que, sem infraestrutura exclusiva e sem sérias restrições para o uso do transporte individual motorizado dentro do sistema viário, inclusive com a imposição de taxações e cobranças para o financiamento dos projetos de mobilidade urbana sustentável, não há nenhuma chance de qualificação do transporte coletivo e modais ativos e das suas ofertas como opções efetivas de viagens dentro das cidades.
Se Tallinn faz autocrítica em relação ao modelo adotado, o mesmo processo deveria ocorrer com as cidades brasileiras com TZ. O que obriga a repensar a estratégia da Tarifa Zero como uma iniciativa isolada, apenas sob a ótica eleitoral e que não se integra às diretrizes dos planos locais de mobilidade e da PNMU. A implantação deste Programa não pode ser uma escolha de Sofia para as administrações municipais, quando os recursos do tesouro são escassos e só se garante a implantação da TZ, sacrificando a qualidade do serviço e a oferta de uma prestação adequada, eficiente e regular, uma vez que isso vai produzir resultados insatisfatórios e pode promover a degradação da atividade, afastando ainda mais passageiros dos ônibus. A tarifa não é a única condicionante para o distanciamento de usuários dos sistemas e Tallinn mostra isso.
Nesse sentido, também não tem lógica a manutenção dos modelos baseados em financiamentos amparados por fontes únicas, como agora no caso da TZ, saindo da receita tarifária para exclusivamente os tão escassos recursos dos orçamentos públicos. A viabilização de uma carteira diversificada de fontes de financiamento da mobilidade urbana é a garantia para a perenidade de programas e ações, e a PNMU já apontava diversas possibilidades de instrumentos de gestão desde 2012. Então, se há a iniciativa e a decisão política para a implementação de programas de tarifa zero, também deve haver comprometimento com a adoção dos instrumentos de gestão da política de mobilidade que irão repensar e qualificar as cidades. Este é o caminho.
Imagem – Divulgação
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