Um torpedo sobre rodas

A restauração de um modelo de ônibus com mais de 65 anos é valorizada por um empresário interessado em manter a história viva

Júlio César Diniz é um conhecido operador de ônibus na área de fretamento. Sua empresa, a Rouxinol, é referência no mercado mineiro, atendendo a importantes empresas de diversos setores na cidade de Belo Horizonte e em sua região metropolitana. Além dos negócios voltados para o setor de mobilidade, Diniz tem uma outra paixão – a sua coleção de ônibus antigos, incluindo, ainda, o gosto pela preservação de automóveis.

Nesse contexto, ele evoca algo importante, que é ressaltar a história, além daquela que está no papel, para a nossa realidade, trazendo para junto das pessoas a oportunidade de conhecer o passado sob a forma do contato e sentimento do segmento sobre rodas que há muito está presente na estrutura urbana e nas viagens intermunicipais.

Diniz, podemos assim dizer, é um colecionador de obras que andam, com o intuito de valorizar a preservação do transporte. Em ônibus, sua coleção é composta por quatro unidades antigas, sendo três que estão presentes há mais tempo em seu “museu particular” e um novo xodó, mais “velho”, diga-se de passagem, que chega para mostrar o seu lado cultural e revelar como foi a introdução da indústria automotiva brasileira.

Imagens exclusivas do processo de reconstrução do modelo

Vamos aos fatos. Esse “novo antigo modelo” é o L-321, chassis da marca Mercedes-Benz (uma das pioneiras em formar o parque da indústria automobilística brasileira), com carroçaria da extinta fabricante carioca, Metropolitana. Para muita gente, ele é o L-312, porém, por alguns detalhes que só são revelados com a ajuda de conhecedores do assunto, a designação do veículo é diferente do usual.

A história desse veículo é curiosa e está voltada para o segmento do caminhão, pois a base dele era para o transporte de carga, mas que, na necessidade do ofício de locomover pessoas, também se transformava em ônibus. Entre 1958 e 1959, a Mercedes-Benz estava na transição de seu portfólio de produtos oferecidos ao mercado – do modelo L-312, equipado com o motor OM-312 de 90 cv de potência para um novo tipo, com cabine avançada, do tipo cara-chata, denominado LP-321, que trazia, o então, mais recente motor da marca, OM-321 com 120 cv.

O trabalho envolvido na preservação do veículo foi minucioso

De início, o L-312 mostrou a grande capacidade fabril da Mercedes-Benz em atender o mercado do transporte sobre pneus em nosso País. Ele foi o primeiro caminhão produzido aqui pela marca alemã, em sua fábrica inaugurada em 1956, na cidade de São Bernardo do Campo, SP. Versátil, o veículo caiu no gosto do transportador de cargas e de passageiros. Como ônibus, somente sob a forma de chassi, o modelo recebeu o apelido “torpedinho”, pois sua configuração tinha, apenas, o capô do motor e o colete do radiador com o aspecto que o deixava com cara de um torpedo.

Cabe aqui uma menção sobre o seu motor OM-312. Ele foi fundido para a fabricante da estrela de três pontas pela SOFUNGE (Sociedade Técnica de Fundições Gerais), empresa estatal inaugurada pelo Governo Federal na cidade de São Paulo, em novembro de 1955, para contribuir com a implantação do setor industrial automotivo brasileiro. De início, foram montadas quatro unidades como protótipos para teste em veículos com 90% de nacionalização, sendo três chassis de ônibus e um como caminhão.

Júlio Diniz não poupou esforços para deixar o seu mais novo “xodó” com a melhor aparência

A apresentação oficial do propulsor aconteceu um mês depois na, ainda, não inaugurada fábrica de São Bernardo, com a presença do recém-eleito Presidente da República, Juscelino Kubitscheck, que conduziu o 1º chassi para ônibus produzido no Brasil, ao lado do presidente da Mercedes-Benz do Brasil, Alfred Jurzykowski.

Com o seu motor OM-312, a fabricante deu um importante passo no ciclo de evolução do transporte nacional com a substituição dos veículos comerciais movidos a gasolina por modelos a diesel, mais resistentes e com bom desempenho operacional.

O modelo L-312 com capô longo serviu de base para os muitos ônibus e lotações na década de 1950. Também, apenas como chassi, recebeu carroçarias de diversos tipos, como o modelo Caio Fita Azul, Ciferal Urbano, Nicola, Cermava, Pilares e Metropolitana.

Voltando ao “torpedinho” do Diniz, ele tem uma configuração especial. Com a chegada do novo caminhão LP-321, a Mercedes-Benz contava, ainda, com uma sobra de peças da cabina do modelo torpedo, o que, pela razão de esgotar o estoque, foram sendo aproveitadas na montagem sobre os chassis com os motores OM-321 de 120 cv, que por uma questão de norma, tanto da própria montadora, como por parte das normas de trânsito da época que usava como identificação principal dos veículos o número do motor, e não o do chassi, receberam a nomenclatura L-321 ou OM-321. Por isso que o ônibus mencionado ressaltado neste artigo é uma versão mais potente. Além disso, ele tem pneumáticos maiores, 900×20.

Seguindo o costume de nomear seus ônibus antigos, Diniz homenageou sua sogra, Dona Hilda, com 94 anos

Em seu processo de restauração, o veículo foi desmontado por completo. Os profissionais envolvidos com a funilaria e mecânica realizaram um trabalho minucioso no chassi, envolvendo trocas de várias peças, repinturas, retiradas de pontos com ferrugem, a substituição de diversos componentes do sistema de freio, da suspensão e da transmissão. Quanto a carroçaria, houve a troca de todo o assoalho e chapas do revestimento, além da colocação de novas janelas, do tipo guilhotina, e o trabalho do acabamento ressaltando os inúmeros detalhes presentes em sua construção. Ainda, na parte externa, foram colocados um bagageiro no teto e uma escada em aço inox.

Uma rápida conversa com Júlio Cesar Diniz

Revista AutoBus – Onde você encontrou esse veículo e como foi o interesse em tê-lo no seu museu?

Júlio Diniz – Procurei por um modelo igual a ele por mais de 10 anos. Tentei empresas que o tinham em suas coleções, como a transportadora Capriolli, de Campinas, uma no Rio de Janeiro, mas era com carroçaria urbana. Encontrei outras, contudo, muito descaracterizadas, usadas em circo. Enfim, descobri esta reformada na cidade de Goiânia.

O interesse vem por ser um modelo raro que deu início ao transporte de passageiros em estradas vicinais. Algumas valentes versões do veículo cumpriam o seu papel em linhas longas. Veja, por exemplo, que na inauguração de Brasília, lá no começo de 1960, seu acesso era feito por estradas de terra, conectando-a com outras grandes cidades e o modelo em questão já estava lá transportando as pessoas.

O capricho no acabamento é um dos diferenciais nesse processo de restauração

AutoBus – Desde quando você tem esse ônibus? O que pode dizer a respeito do resultado desse processo minucioso?

Júlio – Adquiri o veículo em meados de 2018. Levamos cinco anos, tempo marcado não pela restauração, mas pela reconstrução de todas as partes do ônibus, do chassi passando pela mecânica, componentes elétricos, da carroceira, interior etc. Compramos ela como restaurada, porém longe do padrão que gostamos. Acredito que atingimos nosso objetivo para ter um ônibus clássico antigo, conforme ele saiu da fábrica.

AutoBus – Você é um diferencial, dentre a classe dos operadores de ônibus, em preservar a história. Com mais esse veículo, descreva a sua satisfação em fazer parte de um seleto grupo que evoca o conhecimento ao permitir o que o presente saiba como foi o passado?

Júlio – Ao refazer, reconstruir ou restaurar um veículo antigo, no fundo, carregamos a “memória afetiva”, muito interessante em preservar algo que, de alguma maneira, foi importante em parte de nossas vidas. Por diversas vezes observei pessoas emocionadas ao rever alguns modelos de nosso acervo, dizendo que fui muito feliz em um determinado veículo, ao ter viajado por diversas vezes em um modelo de ônibus igual ao que preservamos. Isso não tem preço. É de uma satisfação indescritível.

Entendo que num país de memória curta, estou, de alguma maneira, contribuindo para preservar algo importante relacionado a história da indústria brasileira automotiva.

Contribuiu com este artigo, Carlos Alexandre de Souza (Carlos Asa, de Taubaté – SP)

Imagens cedidas, gentilmente, por Júlio Diniz

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