Por Wesley Ferro, Secretário Executivo do Instituto
MDT
Dentro da mobilidade urbana, e especificamente em se tratando dos sistemas de transporte
público coletivo, algumas questões são pacificadas e plenamente conhecidas pela grande
maioria, como a necessidade da oferta de uma prestação de serviço qualificada e integralmente
conectada com o interesse da sociedade, sob o controle social, com transparência de dados,
gestão pública ampla e eficiente e, principalmente, sobre a incapacidade da manutenção do seu
financiamento baseada exclusivamente na receita tarifária gerada com a venda das passagens,
tendo os usuários como a única fonte de produção de recursos para a manutenção do modelo.
Enquanto diversas cidades ao redor do mundo diversificaram as fontes de recursos para garantir
o financiamento dos seus sistemas de transporte coletivo, incluindo o aporte de subsídios com
origem em seus orçamentos públicos, aqui no Brasil nos arrastamos por longo tempo reduzidos
à manutenção de um modelo perverso baseado na dependência da receita tarifária e que, ao
mesmo tempo, em que reproduzia o descompromisso do Estado em bancar uma política com
impacto social, mesmo reconhecida como um serviço essencial no texto constitucional, depois
como direito social, também gerava um quadro de degradação com redução progressiva de
passageiros transportados e a transferência de todo o ônus de cobertura econômica aos seus
usuários remanescentes e sem outras opções de modais para seus deslocamentos.
Timidamente, o município de São Paulo e o Distrito Federal introduziram estratégias diferentes
do padrão histórico e começaram a aportar subsídios públicos para o financiamento dos seus
respectivos sistemas, na perspectiva da manutenção do equilíbrio das contas e de tarifas em
condições mais compatíveis com a realidade da população. Com a pandemia e o agravamento
do quadro do transporte público, outras cidades seguiram a trilha aberta pelos dois precursores
e hoje o subsídio público, ou outra forma de apoio governamental, estão presentes na grande
maioria das cidades brasileiras.
Se pegamos essas experiências brasileiras como referência, vemos que a maior parte dos entes
participa do financiamento dos seus sistemas de transporte público aportando recursos apenas
de suas próprias dotações orçamentárias, seja com o subsídio parcial que se soma à receita
tarifária para o custeio da operação ou bancando integralmente todo o custo, nos casos da
implantação de programas de tarifa zero universal. Salvo algumas raras exceções, a utilização
de receitas complementares geradas fora da órbita do orçamento público não é a regra geral,
vide, por exemplo, a renúncia dos municípios em implementar a adoção dos instrumentos de
gestão previstos na Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), como a cobrança pelo uso
do estacionamento em vias públicas, a taxação de aplicativos pelo uso do sistema viário, o
pedágio urbano, etc., que poderiam contribuir para o financiamento do transporte público.
Essa dependência exclusiva do recurso público para o financiamento dos sistemas de transporte
coletivo deve ser objeto de atenção e reflexão. Mesmo reconhecendo as especificidades de cada
realidade, é preciso avaliar se haveria uma margem de segurança ou um teto máximo para a
participação dos entes públicos nesse processo, sem se criar o risco do comprometimento na
execução de outras políticas públicas ou de desequilíbrio nos orçamentos dos municípios ou
mesmo de degradação na prestação do serviço ofertado nas cidades. Para ajudar nessa análise,
quero trazer três experiências do nosso país.
O município de São Paulo já tem um histórico de aporte de subsídio para o financiamento do
transporte público. Em relação ao orçamento global da cidade, o valor alocado para a função
transporte foi de 8,0% em 2021; 9,82% em 2022; 9,41% em 2023 e está atualmente
representando 6,57% da dotação geral deste ano, sendo que a execução apenas começou. Por
outro lado, a alocação para a área da saúde sofreu reduções percentuais, comparativamente ao
orçamento global, durante o período 2021-2023 (22,43% → 21,16% → 20,55%,
respectivamente), com o fenômeno se repetindo na educação (25,75% → 25,10% → 21,44%).
Os dados estão disponíveis para consulta nos portais da Prefeitura e da Câmara de SP
(http://transparencia.prefeitura.sp.gov.br/receitas-despesas/ e
https://www.saopaulo.sp.leg.br/atividade-legislativa/legislacao-municipal-biblioteca/).
Em se tratando do Distrito Federal, onde o subsídio e a separação entre tarifas de remuneração
e pública foram introduzidos na licitação realizada em 2012, observa-se um crescimento
expressivo nos valores orçados para a função transporte ao longo do período 2016-2023,
quando comparado com o orçamento global do GDF: 5,16% (2016); 4,98% (2017); 5,75%
(2018); 5,62% (2019); 5,66% (2020); 6,79% (2021); 9,56% (2022) e 10,12% (2023). Se a
avaliação for ainda mais restritiva, adotando-se como referência a subfunção “transportes
coletivos urbanos”, a dotação sai de 2,94% em 2016 para 6,08% em 2023, mais que dobrando
no período. Em contrapartida, a saúde contava com 21,57% do orçamento do GDF em 2016 e
chega a 15,94% no ano passado. A mesma lógica se repete na educação, que representava
22,01% em 2016, reduzindo para 19,39% em 2023. Os dados estão no site do GDF
(https://www.transparencia.df.gov.br/#/despesas/por-funcao).
Partindo-se para o caso de Caucaia/CE, que implantou um Programa de Tarifa Zero em 2022,
verifica-se um crescimento progressivo dos valores programados para a dotação da subfunção
“manutenção do transporte público gratuito”, na comparação com o orçamento global, que
começou com R$ 24 milhões (2,19%) em 2022, passando para R$ 36 milhões (2,32%) no ano
passado e alcançando o patamar de R$ 45,5 milhões (2,62%) em 2024, com aumento de 89%
no aporte para garantir a manutenção do Programa conhecido como “Bora de Graça”, que
ampliou o atendimento da demanda em 400%. Por outro lado, a saúde representava 18% do
orçamento geral de 2020, mas conta com dotação de 16,22% este ano. No caso da educação
houve crescimento entre os dois períodos, saltando de 28,47% para 37,55%, mas ressalvando
que no orçamento também estão incluídos os valores repassados pelo Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). As informações acima estão disponíveis no site
da Prefeitura de Caucaia (https://www.caucaia.ce.gov.br/lrf.php?cat=8).
Longe de querer estabelecer qualquer tipo de correlação entre o aumento do desembolso dos
orçamentos dos três entes acima, com o financiamento dos sistemas de transporte público, e a
redução percentual dos aportes em outras áreas que também representam direitos sociais, o
interesse aqui é apenas de refletir sobre os riscos da manutenção de estratégias baseadas em
uma única fonte de recursos financeiros. Os custos do transporte coletivo são ascendentes (e os
seus dados deveriam ter a transparência como premissa) e o questionamento no título deste
artigo espelha exatamente essa preocupação em tentar compreender qual seria o teto, dentro
dos orçamentos dos entes, para a manutenção das políticas de subsídios ou de custeio total dos
seus sistemas. E também para apontar outras perspectivas para fugir do risco de
descontinuidade das políticas quando os orçamentos públicos se mostrarem insuficientes.
As fontes de recursos precisam ser regulares, permanentes e com várias origens para ajudar na
composição de um fundo geral que financie os sistemas de transporte público e a mobilidade
urbana. A cidade de Luziânia/GO, localizada no Entorno do DF, implantou um Programa de
Tarifa Zero no sistema de transporte urbano, no final de 2023 e, segundo informações
repassadas pelo Prefeito em entrevista concedida à TV Câmara, o seu custo está sendo bancado
com recursos do orçamento público e de emenda parlamentar proposta por deputado federal
que tem base na região, o que é um grave risco, pois não se pode apostar em soluções que
incorporam prazos de validade e que dependem de decisões conjunturais dos seus mandatários.
No cenário futuro de um Sistema Único de Mobilidade Urbana (SUM) implantado, proposta que
defendemos no Instituto MDT desde 2017 e sobre a qual estamos atualmente debruçados, se
propõe o equacionamento do tema do financiamento a partir da viabilização de uma fonte
nacional de recursos sob a gestão do Governo Federal, mas também a obrigatoriedade da
alocação de recursos mínimos dentro dos orçamentos dos demais entes federados, além da
implementação de receitas que poderão ser geradas a partir da adoção dos instrumentos de
gestão apontados na PNMU e que se tornariam possíveis com a construção de uma base legal
construída com normativos aprovados em âmbito federal, oferecendo segurança jurídica a
municípios e estados.
Enquanto o SUM ainda não é realidade, o desafio é repensar nessas possibilidades de geração
de receitas complementares para reduzir o ônus sobre os usuários e a dependência dos
orçamentos públicos, que, infelizmente, podem estar caminhando para um nível de saturação.
Nesse ambiente pré-SUM, talvez esse deveria ser o exercício dos municípios dentro dos seus
territórios e dos estados nas áreas metropolitanas.
Imagem – Divulgação
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