A Transição Energética no Transporte Público de Passageiros e seus Desafios Regulatórios

Há escolhas que são importantes demais para se cometer erros. Mudar os recursos energéticos de um setor tão essencial quanto o transporte de passageiros é uma delas

Por Bruno Batista, Consultor Especialista em Transportes

1879 foi um ano marcado por um destaque tecnológico que mudou de forma definitiva o mundo: Thomas Edison inventou a lâmpada elétrica. Para o Brasil, essa data também é especial, pois registrou a chegada da energia elétrica ao país, impulsionada por Dom Pedro II, que era um conhecido entusiasta de avanços científicos. O imperador, vislumbrando o potencial transformador da energia elétrica, concedeu a Edison a permissão para implantar aqui seus dispositivos, o que foi feito em demonstrações recheadas de espanto no centro do Rio de Janeiro.

Inicialmente as experiências brasileiras tiveram foco na iluminação e no transporte públicos. Em relação a esse último, Niterói-RJ recebeu a primeira linha de bondes elétricos a bateria logo em 1883. Como se vê, o transporte foi pioneiro no uso da eletricidade em nosso país. Daí em diante têm início a construção de sistemas de geração de energia para alimentar uma demanda crescente, principalmente na indústria incipiente e nas cidades que se tornavam mais populosas.

No início do século XX, já no Brasil República, este cenário promissor atraiu empresas como a pioneira Tramway, Light and Power Company que explorou os serviços de transportes (bondes e ônibus), iluminação pública e produção e distribuição de eletricidade, em São Paulo e depois no Rio de Janeiro (que era a capital do país).

Com o crescimento do uso de energia elétrica surgiu a necessidade de se iniciar a regulamentação centralizada pelo Estado, o que se deu com uma lei de caráter mais genérico em 1903 e um decreto em 1904, que resultaram em pouca efetividade. Na prática, estados e municípios fechavam contratos e regulamentavam as concessões conforme suas próprias diretrizes. E, em decorrência dessa situação, não foi definido um padrão de voltagem para nosso país!

Toda esta história foi contada para mostrar que uma indefinição da política energética de 120 anos atrás levou à falta de padronização da rede elétrica brasileira que conhecemos hoje. A estruturação se deu, então, a partir das escolhas de cada empresa contratada que, por sua vez, fazia uso da tecnologia que detinha em seu país de origem. Isso explica o porquê de ainda termos dois sistemas de voltagem, um de 110 v e outro de 220 v, a depender da região.

Os Riscos da Indefinição

Grosso modo, as políticas públicas servem para endereçar e solucionar questões coletivas identificadas na sociedade. Cabe a elas estimar os recursos disponíveis, avaliar o custo-benefício e definir linhas de ação e formas de implementação.

O caso do sistema elétrico nacional é um exemplo que indica que, não raro, o resultado de uma zona cinzenta em termos de política pública faz com que eventuais ajustes ou correções sejam demasiadamente caros ou complexos. Ou mesmo impossíveis de serem feitos. E que seus efeitos são de longo prazo.

E eis que em nossos dias, em pleno século XXI, o Brasil se encontra mais uma vez em uma encruzilhada tecnológica. E sua definição urge por uma política regulatória clara. Do contrário, resultados poderão gerar custos sociais elevados e riscos de investimento de grandes dimensões. Estou falando da transição energética nos veículos do transporte de passageiros sobre pneus.

Bruno Batista

O Cardápio Tecnológico Atual

Não, a transição tecnológica no transporte de passageiros não é novidade, já passamos por isso antes. Por séculos o deslocamento humano se deu mediante o uso de tração animal e vivíamos bem dessa forma. Mas então os sistemas mecanizados, primeiro o elétrico e depois o a combustão, mudaram tudo, mostraram seus benefícios e ganharam escala, resultando na mundial e amplamente difundida tecnologia de ônibus movidos a diesel, que reinou quase solitária por décadas a fio.

Entretanto, alterações perceptíveis no meio ambiente, restrições regulatórias e novos posicionamentos sociais demandaram mudanças mais uma vez, mas agora em uma escala muito maior. Com recursos e pesquisas avançados, tecnologias inovadoras estão sendo criadas ou mesmo aperfeiçoadas, resultando nas diversas opções energéticas que podem ser utilizadas no transporte rodoviário de passageiros. Energia elétrica, biometano, hidrogênio e diesel verde, em suas diversas variações, são hoje algumas das opções mais viáveis que poderão, no futuro, substituir ou reduzir drasticamente o uso de combustíveis fósseis.

O Elemento que Ainda Falta

A esta altura você pode estar se perguntando: com tantas opções, onde está o problema? O problema, ou melhor, os problemas estão na incerteza geopolítica (vide os reflexos da guerra da Ucrânia ou da nova política energética dos EUA), na ainda baixa escala da produção de algumas fontes energéticas, na inexistência de cadeias de fornecimento em diversos países e regiões, nos altos custos de desenvolvimento tecnológico. Todos eles, contudo, tendem a ser solucionados em mais ou menos tempo a partir da estruturação do próprio mercado.

A parte mais difícil é, então, aprimorar o principal elemento, aquele que incentiva e formata as bases de como essa desejada mudança deve se desenvolver: a política pública. E no caso brasileiro, como mostra a história, isso é muito relevante. O País tem 5.570 municípios que precisam ter diretrizes claras, congruentes e bem estruturadas em termos de como essa transição energética pretende ser feita. Não se pode correr o risco de que múltiplas escolhas isoladas dificultem ou inviabilizem a escala e a racionalidade tecnológica necessárias.

Imagine, por exemplo, a complexidade de se substituir os mais de 13 mil ônibus da cidade de São Paulo. Quaisquer que sejam as tecnologias a eventualmente serem adotadas, elas poderão afetar, dentre outros, as características da mobilidade urbana, a oferta de energia elétrica, a construção de novos equipamentos urbanos, o mercado de peças e de veículos, a demanda por profissionais do setor de transporte, as contas públicas municipais e, em última instância, o preço das passagens.

O Caminho

Há escolhas que são importantes demais para se cometer erros. Mudar os recursos energéticos de um setor tão essencial quanto o transporte de passageiros é uma delas. Talvez o brilho das lâmpadas de Edison e as grandes transformações posteriores tenham ofuscado o debate mais aprofundado para a constituição do setor elétrico nacional mais de um século atrás. Mas agora é chegada a hora de se construir uma política pública bem estruturada, moderna e pautada na racionalidade, voltada à evolução dos sistemas de transporte por ônibus, que movem o Brasil a cada dia.

Nota: A lei e o decreto mencionados no artigo são: art. 23 da Lei 1.145, de 31 de dezembro de 1903; e o Decreto 5.704, de 10 de dezembro de 1904.

Imagens – Revista AutoBus e acervo pessoal

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