UM MARCO HISTÓRICO PARA OS USUÁRIOS DO TRANSPORTE PÚBLICO

A desoneração das gratuidades na tarifa, que no médio prazo, é possível avançar para o financiamento extra tarifário e alcançar o objetivo da tarifa módica ou mesmo a tarifa zero (como ocorre em outros serviços essenciais)

Por Miguel Ângelo Pricinote

No dia 16 de fevereiro de 2022, foi aprovado, por unanimidade, no Senado Federal o Projeto de Lei 4.392/2021. O PL, de autoria dos senadores Nelsinho Trad e Giordano, relatado pelo senador Eduardo Braga, propõe financiar, por três anos, a gratuidade oferecida a idosos por lei federal, a partir da instituição do Programa Nacional de Assistência à Mobilidade dos Idosos (PNAMI). Se sancionado da forma como está, o governo federal irá repassar R$ 15 bilhões para financiar as passagens de pessoas com mais de 65 anos pelo período de três anos, garantindo o direito aos idosos e desonerando a tarifa do usuário pagante.

Na justificativa do projeto, os senadores argumentam que a pandemia de Covid-19 impactou o equilíbrio financeiro do transporte público, principalmente nas cidades mais populosas: pelo menos 36 municípios já colocam subsídios no sistema de transporte público para reduzir compensar a redução da arrecadação tarifária.

De acordo com os senadores, as gratuidades ou isenções tarifárias, que têm a natureza jurídica de medida assistencial, devem ser sustentadas conforme determina a Constituição: por recursos públicos orçamentários. Eles lembram que, no Brasil, com poucas exceções, o custeio da gratuidade dos idosos é repassado aos demais usuários pagantes, onerando principalmente as pessoas menos favorecidas que mais utilizam o serviço.

Entretanto, tal fato histórico, recebeu críticas vagas e sem lastro com a própria legislação existente. Neste sentido será apresentado o principal questionamento (feito pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – Idec) e em seguida os pontos que demonstram que a medida, além de correta e importante, foi também atrasada, uma vez que já existiam os precedentes legais e que a pandemia só revelou para o País a insustentabilidade dos serviços de transporte público coletivo.

O Idec encaminhou uma carta aos senadores com críticas à proposta elaborada pelos empresários de ônibus que não atinge a raiz do problema – “A melhor forma de resolver a crise é fiscalizar os custos reais das empresas e pagá-las com base nesses valores”, afirmou Rafael Calabria, coordenador do Idec. Um eventual socorro financeiro deve ocorrer com contrapartidas de transparência e qualidade do serviço, com regras claras. “Se o subsídio por gratuidade for implementado, as empresas vão receber mais recursos em linhas onde há mais idosos, sendo que não necessariamente são as linhas mais dispendiosas, com maior frequência ou qualidade, ou seja é um formato incoerente de repasse”, completa.

Assim sendo, o Idec apresentou três falhas graves relativas ao uso do dinheiro público e da garantia de qualidade do serviço. São elas:

Miguel Ângelo Pricinote

1- Custeio imensurável – os idosos acessam o transporte apenas com o RG, não rodam a catraca. Assim, não há como contabilizar com segurança esse público para calcular de forma confiável o valor do custeio. A proposta de subsídio de R$ 5 bilhões é baseada em estimativas inconsistentes, o que reforça a visão já existente na sociedade sobre a falta de transparência no setor e mau uso do dinheiro público.

2- Não existe benefício novo – a gratuidade do idoso já é uma realidade. A proposta em questão não produz um novo impacto social, nem traz inovações para a transparência gestão do transporte.  Trata-se apenas de uma injeção de recursos direto para os empresários, sem gerar nenhuma melhoria no serviço.

3- Proposta não resolve o problema – a gratuidade não é um custo para o transporte. Esse argumento mascara um dos principais problemas do setor, apontado há anos: a instituição da tarifa paga pelo passageiro como a única fonte de recursos para bancar os custos do serviço. Isto é, a remuneração das empresas por lotação. O custo real dos empresários não está na quantidade de passageiros transportados, mas nos insumos para viabilizar o serviço, como combustível, veículo, salários dos trabalhadores etc.

Portanto, aqueles que não conhecem o funcionamento e a legislação do transporte público podem até concordar com os argumentos falaciosos apresentados pelo Idec, mas a verdade é a seguinte:

1 – Quanto ao “custeio imensurável”, a variação no número de idosos usuários do transporte não gera impacto direto no valor total pago pelo Governo Federal, uma vez que a necessidade já é conhecida e caso o número seja o dobro ou triplo do conhecido o que será alterado é o valor nominal por idoso.

2 – Quanto ao “não existe benefício novo”, um fato importante é que com o controle, o número de fraudes decorrente do mal uso do benefício será reduzido e por fim irá gerar uma tarifa em média 25% menor para o usuário que normalmente são pessoas em situação de vulnerabilidade social. Segundo estudo feito pelo IPEA (2021), no qual dadas as atuais perspectivas de envelhecimento demográfico no País, a manutenção de um modelo de financiamento das gratuidades baseado no sistema de subsídios cruzados entre usuários tende a agravar algumas distorções na tarifação destes serviços e a contribuir para o seu encarecimento. Uma rediscussão deste modelo poderá se beneficiar muito de futuros estudos que comparem diferentes experiências municipais e internacionais adotadas na gestão financeira do transporte urbano e das fontes alternativas de financiamento utilizadas para custear tais benefícios tarifários. Logo o benefício será a redução da tarifa paga por todos e não somente um benefício para um grupo específico.

3 – Quanto ao item “Proposta não resolve o problema – a gratuidade não é um custo para o transporte”, é um dos maiores absurdos. O Idec esqueceu de alguns fatos de grande importância:

i) qual é a lógica da tarifa – A lógica da tarifa é repassar aos usuários todo custo de um serviço que beneficia toda a sociedade. As gratuidades existentes para as pessoas com deficiência, idosos, crianças, etc. são financiadas pelos usuários. É óbvio que o transporte público é um direito social que dá acesso a outros direitos básicos, como educação, saúde, cultura e lazer, portanto, é um dever do Estado garanti-lo, no primeiro momento, com o custeamento com recursos públicos dessas gratuidades, como já faz com o passe estudantil, o que já seria um grande passo na direção da adoção da tarifa zero ou um sistema híbrido com uma tarifa módica.

Daí decorre que a tarifa deve ser suficiente, a todo tempo, para, de acordo com as premissas contempladas no contrato de concessão, custear os encargos demandados para a oferta do serviço à população (compra de insumos, pagamentos de funcionários, manutenção e aquisição da frota, manutenção dos terminais, etc.), realizar os investimentos necessários para o cumprimento das obrigações assumidas.

Tal modelo vem provando iniquidades uma vez que a forma atual de financiamento exclusivamente pela tarifa impacta os mais pobres, já que o transporte público beneficia a todos os segmentos da sociedade, sejam usuários ou não. Portanto, o sistema deveria ser financiado por todos dentro de um modelo preferencialmente progressivo (quem tem mais, paga mais).

E desde que a tarifa atingiu a capacidade (e vontade) de pagamento dos usuários de baixa renda, consolidou-se forte distorção do modelo adotado quando não há critérios sociais (como condição de renda) na concessão de benefícios tarifários, originando o financiamento de passagens de pessoas de alta renda pelos usuários de baixa renda. Isso ocorre, por exemplo, na gratuidade de idosos, que é universal e não depende da renda do beneficiário. Isso também ocorre na concessão de benefícios estudantis quando não há critérios mínimos de renda. É literalmente uma política “Robin Hood” inversa, onde há transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos.

ii) sobre os tipos de custos do transporte público – um fato importante a ser apontado é que estes custos existem, independentemente se o serviço é prestado por empresas públicas ou privadas. Logo, para o sistema de transporte se manter funcionando, estes custos devem ser pagos por alguém. Para o melhor entendimento, devemos dividir as despesas do sistema de transporte em: custo fixo e custo variável, a saber:

a) O custo fixo é a parcela do custo operacional que não se altera em função da quilometragem percorrida, ou seja, os gastos com os itens que compõem esse custo ocorrem mesmo quando os veículos não estão operando. Sendo constituído pelos custos referentes a depreciação, a remuneração do capital, as despesas com pessoal e as despesas administrativas. O que equivale a 68% dos custos totais.

b) O custo variável é a parcela do custo operacional que mantém relação direta com a quilometragem percorrida, ou seja, sua incidência só ocorre quando o veículo está em operação. Esse custo é constituído pelas despesas com o consumo de combustível, de lubrificantes, de rodagem e de peças e acessórios. O que equivale aos demais 32% dos custos totais.

iii) a qualidade do serviço é determinada nos contratos: Elas vêm caindo devido ao congelamento das tarifas ou por reajuste inferior aos valores calculados. Uma das principais causas pelo colapso do transporte coletivo é a ausência do poder público (jogando a responsabilidade para os operadores). Portanto, esse discurso de contrapartida é o ponto mais falacioso do argumento, pois ela (contrapartida) não vem do concessionário (operador privado) como uma barganha (troca), mas sim da determinação do poder público na definição do escopo do serviço, com os impactos sendo remunerados pela tarifa (seja ela técnica ou única). Porém, mais qualidade significa aumento de tarifa ou subvenção pública. O discurso de contrapartida do operador é a principal arma daqueles governantes que não querem resolver a situação do transporte, pois é mais fácil culpar o privado do que assumir a sua responsabilidade constitucional. Em Goiânia (GO) estamos vivendo este impasse.

Outro aspecto relevante na análise dos problemas do modelo atual de custeio do serviço é quanto a expansão e melhoria dos serviços ofertados. Em geral, os reajustes tarifários são direcionados apenas para repor a parcela de custos que tiveram aumento no período analisado, sem que haja espaço para se discutir o aumento da oferta dos serviços. O objetivo das negociações é estabelecer o mínimo de reajuste possível para não comprometer a capacidade de pagamento do usuário.

iv) a legislação vigente – A Lei Nacional da Mobilidade (Lei 12.587/12) em conjunto com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 74/13) que inclui o transporte público na lista de direitos sociais dos cidadãos. Com isso, o transporte público tende a ter o mesmo status da educação, saúde, segurança, entre outros. Além do fato que na Lei Nacional estabelece no artigo 8º

Art. 8º A política tarifária do serviço de transporte público coletivo é orientada pelas seguintes diretrizes:

(…)

VIII – garantia de sustentabilidade econômica das redes de transporte público coletivo de passageiros, de modo a preservar a continuidade, a universalidade e a modicidade tarifária do serviço;

Lembrando que a PEC 74/2013 teve como objetivo de assegurar ao cidadão a manutenção do benefício do transporte público, como já acontece com saúde e educação.

v) o Novo Marco Legal do Transporte que é a solução definitiva para a sustentabilidade do transporte público urbano. É uma proposta multimodal, para ônibus urbano, metrô e trem, representando uma ruptura com relação ao modelo atual, com a oferta de transparência, tarifa módica, serviço de qualidade para o passageiro e mais controle para os entes públicos.

Por isso, há necessidade de se discutir, no marco regulatório, a implementação da subvenção pública que possa cobrir a diferença entre o custo da prestação dos serviços de transporte de passageiros e a capacidade de pagamento dos usuários, bem como a gestão das gratuidades e a concessão de subsídio.

Vale lembrar que, se nada for feito, pelos mecanismos contratuais, a próxima atualização tarifária pode provocar um aumento de mais de 60% da tarifa, o que inviabilizaria de vez o serviço, sendo que a única solução possível para minimizar esse risco é a subvenção pública da tarifa com a mudança do modelo de remuneração, deixando de ser por passageiro para ser por oferta. Neste novo modelo, os operadores receberiam do poder público por produção e pela qualidade do serviço, fazendo com que as empresas busquem aumentar e qualificar cada vez mais o serviço, inclusive com a ampliação da frota.

Mas, até atingirmos o novo modelo, um passo importante é a desoneração das gratuidades na tarifa, que no médio prazo, é possível avançar para o financiamento extra tarifário e alcançar o objetivo da tarifa módica ou mesmo a tarifa zero (como ocorre em outros serviços essenciais). Para tanto, todos os entes públicos envolvidos com o transporte público poderiam arcar com as gratuidades que cada um implementou. 

Daí para tarifa zero, seria somente uma questão de adotar os demais mecanismos de financiamento. Portanto, o sonho de um transporte público com a melhor qualidade possível e acessível a todos, como política pública social, é plenamente possível. Mas, para isto devemos abandonar os discursos fáceis e o preconceito.

Miguel Ângelo Pricinote é geógrafo e coordenador técnico do Fórum Mova-se

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