Reflexões a propósito da pesquisa CNT de mobilidade da população urbana

A Pesquisa buscou informações acerca dos modais que foram utilizados pelas pessoas em substituição ao transporte público por ônibus.

Por Wesley Ferro Nogueira, economista e, atualmente, Secretário Executivo do Instituto MDT, além de membro titular do Conselho de Transporte Público Coletivo do DF e do Conselho de Trânsito do Distrito Federal

Recentemente, foi publicado um excelente documento técnico produzido pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), com a parceria da Associação Nacional das Empresas de Transportes urbanos (NTU), denominado “Pesquisa CNT de Mobilidade da População Urbana 2024”, a partir de entrevistas realizadas junto a 3.117 domicílios de 319 cidades brasileiras, com porte variando entre 100 mil e acima de 3 milhões de habitantes, e segmentação por classe social, sendo que a maior parcela da amostra é representada por famílias que se encontram na classe C (54,1%).

A Pesquisa produziu um significativo e importante conjunto de dados que apresentam um retrato atual da mobilidade urbana no país, detalhando aspectos relacionados às viagens realizadas pela população entrevistada, mas com interesse principal no levantamento de informações para a investigação e o consequente entendimento das causas do processo que levou à redução da participação do transporte público por ônibus dentro da matriz modal das cidades brasileiras, na perspectiva da indicação de proposições para reversão do quadro. Na minha análise quero destacar alguns itens que me chamaram a atenção e, em especial, questões preocupantes que merecem séries reflexões.

O transporte foi destacado como o terceiro principal problema urbano, atrás apenas da saúde e da insegurança/violência urbana. O tempo de viagem estimado para a conclusão de um percurso de 10 km durante o congestionamento, que varia entre 31 minutos em Brasília e até 58 minutos em Recife, segundo dados do aplicativo de navegação tomtom, expõe a gravidade da imobilidade nas cidades e, além disso, o custo médio diário dispendido pela população com o transporte amplifica o problema, em que pese o fato de que o desembolso maior está representado, predominantemente, pelas opções de transporte individual motorizado (variando de motocicleta própria a R$ 10,79; por aplicativo a R$ 26,77; passando pelo carro próprio na faixa de R$ 29,91 e chegando ao táxi em R$ 45,69), com o transporte público coletivo aparecendo bem atrás nessa disputa (VLT a R$ 7,65; metrô a R$ 9,55 e ônibus a R$ 9,75), mas que mesmo assim tem deixado de ser a escolha preferencial das pessoas, o que nos obriga a repensar os nossos sistemas e os atuais modelos baseados no protagonismo de veículos.

Em relação aos modais utilizados pelo grupo estudado, e considerando a possibilidade da indicação de até três meios de transporte, sob a lógica da integração intermodal, a participação do transporte individual motorizado representa 68,3% da matriz, enquanto que o transporte público coletivo é a referência para apenas 31,7% das viagens. Comparando-se com os dados de 2017, os modais coletivos perderam uma participação de 18% do atendimento da demanda, que migrou na mesma proporção para os meios de transporte individuais.

O gráfico 39 da Pesquisa demonstra que o transporte público coletivo é mais utilizado pela classe C (ônibus, por exemplo, é a opção de 60,5%), ao passo que o automóvel próprio é mais representativo na classe B (52,1%), e não na classe A, que estranhamente aparece com um percentual bem baixo (4,8%), o que parece ser um erro do processo de investigação junto ao público referenciado, assim como a indicação de que sua participação é mais representativa em municípios entre 100 mil a 300 mil habitantes, e não naqueles com população acima de 3 milhões de pessoas. Por outro lado, as classes D/E utilizam com mais intensidade, pela ordem, a bicicleta (26,1%), o serviço de mototáxi (25,8%), o transporte clandestino (25%), a circulação a pé (23,2%) e o transporte público por ônibus (18,7%).

Como essa população mais vulnerável está comumente localizada nas regiões mais distantes do território urbano, e considerando que são as redes de transporte por ônibus que conseguem ter a capilaridade de atendimento no espaço, há um desafio imediato no sentido de garantir a incorporação desses segmentos ao sistema de transporte público, seja pelo seu redesenho e via acessibilidade, mas principalmente pela viabilização de fontes diversas de recursos financeiros que possam assegurar a modicidade tarifária ou mesmo a implementação de gratuidades para público com perfil específico de renda, como aquele com inscrição no CadÚnico.

Outro aspecto, que não é novidade para quem atua na área, mas que foi destacado na pesquisa, refere-se à manutenção da grande concentração de viagens nos horários de picos do dia, que acaba gerando o colapso sobre a mobilidade urbana dentro das cidades. Quando o motivo da viagem é o trabalho, por exemplo, 80,8% dos deslocamentos estão localizados no pico da manhã (no horário compreendido entre 5h00 e 9h00), sendo quase 50% somente entre 7h00 e 9h00, enquanto que no pico da tarde (17h00-21h00), o percentual é de 56,7%.

Diante desse quadro, é incompreensível o fato de que há muito abandonamos a defesa da implantação das políticas locais de escalonamento dos horários das atividades econômicas, para a descompressão sobre a rede de mobilidade nos picos, visando distribuir uniformemente a demanda ao longo do dia e otimizar o sistema. Considerando que a mobilidade urbana não pode ser uma política estanque e desalinhada com as demais, assim como defendemos a sua integração com a de uso e ocupação do solo, também é urgente e necessária a retomada das articulações com os setores produtivos locais e demais empregadores de mão-de-obra, para a viabilização da adoção de medidas que definam horários diferenciados de funcionamento de estabelecimentos de comércio, indústria, serviços e setor público.

A Pesquisa buscou informações acerca dos modais que foram utilizados pelas pessoas em substituição ao transporte público por ônibus. Pela ordem aparecem: carro próprio (38,5%), a pé (19,3%), aplicativos (18,2%) e moto própria (14,7%). Na segmentação por classe social, e estranhamente, para a classe A são citadas migrações representativas para o mototáxi (59,2%) e o transporte clandestino (89,2%), o que parece ser um erro. O carro próprio foi a principal escolha da classe B (47,6%), enquanto que os aplicativos foram a opção da classe C (56,6%), confirmando a tese de uma das prováveis perdas de passageiros no transporte público no país.

Por outro lado, em se tratando das classes D/E, a migração do ônibus se direcionou, principalmente, para a mobilidade a pé (27,2%) e a bicicleta (26,3%), o que pode indicar, no primeiro momento, a incapacidade econômica para o pagamento da tarifa, apesar do registro significativo da mudança também para aplicativos (20,1%) e mototáxi (18,4%), quando a escolha deve ter se orientado muito mais pela redução do tempo de viagem, uma vez que o custo diário desses dois últimos modais está acima do valor do transporte público. Inclusive, registra-se que, para as classes D/E, a tarifa foi somente o quinto motivo para a substituição do ônibus. Avalia-se que o objetivo central é ofertar um sistema de transporte coletivo que atenda toda a sociedade, mas a promoção de ações para atrair de volta as classes C, D e E deveria ser uma preocupação imediata da gestão pública.

Dentre os motivos citados para a substituição do ônibus por outros modais, destacam-se: pouco conforto (28,7%), falta de flexibilidade dos serviços (20,7%), elevado tempo de viagem (20,4%), mudança do local de trabalho (17,2%) e preço elevado da tarifa (11,8%). Sabe-se que conforto é um atributo intrínseco de viagem individualizada, não é uma propriedade inerente ao transporte público, mas um eficiente sistema de informação ao usuário, uma tarifa justa, a integração intermodal, a oferta de aplicativos para facilitar o acesso dos usuários e a existência de uma boa cobertura de infraestrutura exclusiva são diferenciais importantes para atrair a demanda perdida e conquistar novos passageiros para o sistema de transporte coletivo.

Reforça a preocupação o fato de que, entre o grupo pesquisado, 26,6% das pessoas afirmaram que nada as fariam retornar ao uso de ônibus, enquanto que as demais apontaram algumas condições para que isso se efetivasse, como, entre outras: a adoção de uma tarifa menor (21,2%), maior conforto (19,8%), viagens mais rápidas (19%) e a flexibilidade dos serviços para rotas e horários (14,3%). Mesmo questionados se haveria alguma possibilidade de retorno após a redução de tarifa, 23,2% dos respondentes informaram que a volta não aconteceria.

Quando a indagação se referiu a quem caberia a responsabilidade para o custeio da tarifa do transporte público, a opção somente o poder público foi a escolha de 42,3%, o que configuraria a implantação de um modelo baseado na tarifa zero; a alternativa apontando que a maior parcela deveria caber ao tesouro municipal, como um subsídio parcial, além da própria tarifa, registrou 23,1%. Por outro lado, e o que é extremamente preocupante, 20,4% da amostra defendeu o financiamento exclusivamente pelos usuários do sistema, com referência nessa faixa inclusive nas classes C e D/E. Ou seja, mesmo parcelas das camadas mais vulneráveis da sociedade, que são o objeto de interesse principal das políticas de inclusão, reproduzem a lógica da defesa empreendida por segmentos posicionados no pólo oposto.

Mas a questão que mais me assustou em toda pesquisa foi quando se questionou acerca da possibilidade de utilização dos instrumentos de gestão para a geração de recursos visando ao financiamento do sistema de transporte público, onde houve manifestação de forte rejeição para a maioria das opções sugeridas que alcançavam diretamente o transporte individual motorizado, mesmo que isso pudesse representar a qualificação do transporte coletivo, sendo: cobrança por estacionamento público (74,2%); pedágio urbano (69,8%); contribuição para o transporte público (68,4%) e taxação de aplicativos (63,3%).

Em minha opinião, os dados demonstram de forma clara que nós, que atuamos na mobilidade urbana, falhamos nos processos de diálogo com as parcelas da sociedade que mais deveriam compreender as questões associadas à defesa da importância da Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU). Enquanto ficarmos reproduzindo os nossos eruditos discursos entre nós mesmos, não se pode esperar outra coisa. Enfim, o nosso desafio é identificarmos como poderemos estabelecer canais diretos de comunicação com a população, principalmente com os segmentos que estão marginalizados no processo de acesso à cidade e que, por isso, seriam os maiores beneficiários de um novo modelo pautado pela sustentabilidade. Com isso, não tenho dúvidas de que poderíamos avançar em direção à construção de núcleos de defesa da PNMU, além dos nossos tradicionais círculos.

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