Os números não mentem (e indicam caminhos a seguir)

É importante ressaltar que esses números foram drasticamente afetados no período da pandemia, quando houve uma redução de até 80% da demanda de passageiros, em março de 2020

Por Francisco Christovam, diretor-executivo da NTU

A Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU lançou, no seu Seminário Nacional realizado em agosto passado, a versão atualizada do Anuário NTU 2023/2024, com 30 anos de monitoramento da situação do transporte urbano por ônibus, no Brasil. O documento apresenta uma série histórica completa de onze indicadores operacionais – demanda de passageiros, quilometragem produzida, viagens realizadas, frota operacional, idade média da frota, custo por quilômetro, tarifa pública média, entre outros – obtidos em nove capitais e regiões metropolitanas que, juntas, representam aproximadamente 33% da frota nacional e 34% da quantidade de passageiros transportados no país. Os levantamentos e as análises realizadas permitem um bom entendimento da evolução do principal meio de deslocamento nas cidades brasileiras.

No mesmo evento, a Confederação Nacional do Transporte – CNT apresentou os resultados da Pesquisa de Mobilidade da População Urbana, cujo objetivo central foi levantar informações para a elaboração de políticas de transporte de passageiros, em âmbito nacional. A pesquisa buscou retratar a realidade de 319 municípios, com população superior a 100 mil habitantes que, juntos, somam 115,6 milhões de pessoas, ou seja, 57% da população brasileira. A classificação social dos entrevistados foi determinada pelo Critério Brasil de Classificação Econômica, elaborado pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa – ABEP. Com base nesse critério, 72,6% dos entrevistados pertencem às classes C, D e E, ou seja, a parcela da população que mais utiliza o transporte coletivo. Foram realizadas 3.117 entrevistas com os responsáveis pelo domicílio e 6.947 entrevistas com moradores, gerando um grau de confiança de 95% e uma margem de erro de 1,8%, para os primeiros entrevistados, e de 1,2%, para os segundos.

Embora os dois trabalhos tenham seguido as melhores e mais modernas técnicas de levantamento e análise de dados, o cruzamento das informações obtidas é que permite um diagnóstico e um prognóstico muito acurado da real situação do transporte coletivo urbano de passageiros, no Brasil. Se o anuário pode ser comparado a um filme, com roteiro bem definido, a pesquisa apresenta uma foto da situação, com foco e detalhes muito precisos.

O Anuário da NTU mostra que, nos últimos dez anos, houve uma queda de cerca de 45% no número de passageiros transportados, mensalmente. Em 2013, o número médio de passageiros transportados, por mês, foi de 390 milhões e, em 2023, esse número caiu para 214 milhões. Com relação à quilometragem produzida, no mesmo período, a redução foi de 40%, ou seja, de 230 milhões de quilômetros para 138 milhões de quilômetros, por mês.

É importante ressaltar que esses números foram drasticamente afetados no período da pandemia, quando houve uma redução de até 80% da demanda de passageiros, em março de 2020. De lá para cá, houve uma gradual recuperação da demanda; mas, a quantidade atual de passageiros transportados continua cerca de 15% inferior ao volume verificado no período anterior à pandemia. É possível inferir que se trata de uma demanda perdida, composta por passageiros que fizeram a opção por outro modo de deslocamento – carro próprio, motocicleta, serviço por aplicativo, carona solidária, entre outros – e que, muito provavelmente, não retornam para o transporte público.

Uma outra avaliação apresentada no Anuário da NTU diz respeito à produtividade do setor, ou seja, a evolução do índice de passageiros equivalentes por quilômetro – IPKe, cuja variação foi de 2,52, para 1,59, para 1,68 e para1,53, nos anos de 1993, 2003, 2013 e 2023, respectivamente. Essa alteração representa uma perda de cerca de 40% de produtividade, no período de 1993 a 2023 e se deve, basicamente, ao baixo investimento em infraestrutura e ao aumento crescente dos congestionamentos urbanos, que reduzem a velocidade média da frota, aumentam o tempo de viagem, afetam o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos e comprometem a modicidade tarifária.

Outro índice que merece ser analisado é a queda do número de passageiros transportados, diariamente, em cada veículo do sistema de transporte urbano, com uma redução de 631, para 428, para 407 e para 295, nos anos de 1995, 2003, 2013 e 2023, nessa ordem. Essa perda, de cerca de 53%, no desempenho da frota, pode ser atribuída à redução da demanda e ao baixo nível de priorização do transporte coletivo nos sistemas viários das cidades brasileiras.

Para completar, vale citar a evolução da idade média da frota brasileira de ônibus destinados ao transporte urbano, que variou de 4,53, para 5,60, para 4,47 e para 6,42 anos, em 1995, 2003, 2013 e 2023, respectivamente. É importante destacar que, nos últimos três anos, o indicador atingiu os resultados mais elevados de toda a série histórica, de quase 30 anos.

A pesquisa da CNT, por sua vez, apresenta uma gama enorme de informações, relevantes e importantes, para uma avaliação do perfil e do comportamento do passageiro do transporte urbano e para a tomada de decisões que podem definir uma nova ordem de valores, na prestação desse serviço público.

A pesquisa mostrou que o ônibus ainda é o meio de transporte mais utilizado pela população brasileira, representando cerca de 31% dos deslocamentos realizados, muito semelhante à utilização do carro próprio. Vale mencionar que, de 2017 para 2024, a utilização do ônibus caiu de aproximadamente 45% para 31%, o uso do carro passou de 22% para quase 30% e o da moto mais do que duplicou, passando de 5% para 11%. No mesmo período, o uso dos serviços por aplicativos subiu de 1% para 11% e os deslocamentos a pé mantiveram-se praticamente estáveis, representando 22% das viagens realizadas.

Outro dado interessante diz respeito ao custo médio diário, por tipo de transporte utilizado. O dispêndio diário com as viagens por taxi, carro próprio, aplicativos, mototáxi e moto própria, é da ordem de R$46,00, de R$30,00, de R$27,00, de R$13,00 e de R$11,00, respectivamente, enquanto o deslocamento por ônibus custa, em média, R$9,75.

Um ponto que chama a atenção é a quantidade de pessoas que relataram ter mudado o modo de deslocamento, nos últimos anos. Pela pesquisa, quase 30% dos entrevistados deixaram de utilizar e outros 27% diminuíram o uso do ônibus, substituindo-o por outros meios de transporte como o carro próprio (38,5%), as viagens a pé (19,3%), os aplicativos (18,2%) e a moto própria (14,7%).

Os principais motivos que provocaram essas substituições foram: pouco conforto (28,7%), falta de flexibilidades nos horários e nas rotas (20,7%), elevado tempo de viagem (20,4%), mudança do local de trabalho (17,2%), preço elevado da tarifa (11,8%), insegurança (11,4%) e baixa confiabilidade (10,2%).

Mas, uma das informações mais importante da pesquisa é que 63,5% dos entrevistados que deixaram de usar o ônibus voltariam para o transporte público, desde que a tarifa fosse menor (21,2%), os ônibus tivessem mais conforto (19,8%), as viagens fossem mais rápidas (19,0%), as rotas e os horários fossem mais flexíveis (14,3%), os ônibus fossem mais pontuais (12,8%) e o serviço fosse mais seguro (8,7%). Outra informação relevante é que 25,2% das pessoas que deixaram de utilizar o ônibus voltariam a utilizar o serviço, se a tarifa fosse reduzida pela metade.

Assim, após o cruzamento das informações disponíveis nos dois trabalhos e feitas as correlações necessárias, pode-se chegar às seguintes conclusões ou recomendações:

  • O transporte coletivo urbano de passageiros ainda é e continuará sendo um serviço público essencial, estratégico e fundamental para a organização do espaço urbano e para a boa qualidade de vida das pessoas que vivem nas cidades. O ônibus também continuará sendo o principal meio de deslocamento das pessoas, nas cidades brasileiras;
  • As autoridades, nas três esferas de governo, precisam reconhecer que o transporte público é um dever do Estado e um direito do cidadão. Não há como prestar serviço de qualidade à população sem investimentos em infraestrutura adequada – pista de rolamento, estações de embarque e desembarque, terminais de transferência, sistemas de comunicação, entre outros;
  • É notória a mudança de hábitos da população que utiliza os serviços de transportes públicos e dos atributos que interferem na opção do passageiro pelo transporte coletivo em detrimento do transporte individual. O passageiro precisa ser tratado como cliente e suas necessidades e expectativas levadas em conta, na definição das características do serviço a ser prestado;
  • A migração dos passageiros do transporte coletivo para o transporte individual – carro, moto, aplicativo – se deve muito à falta de investimentos para o financiamento da infraestrutura e da renovação da frota, bem como para o custeio da operação, tornando o transporte por ônibus pouco atrativo, pouco flexível e muito pouco competitivo com os outros modos existentes nas cidades;
  • A recuperação da chamada “demanda perdida” só será possível com a redução do valor das tarifas e significativa melhoria na qualidade do serviço prestado, incluindo o uso de infraestrutura adequada, correto dimensionamento da demanda e da oferta, definição de rotas e horários mais flexíveis e prestação do serviço com confiabilidade, regularidade e pontualidade;
  • É preciso acelerar as mudanças em curso, de ordem institucional, econômico-financeira, jurídica e operacional, incluindo a alteração do perfil tecnológico da frota e a concessão de subsídio aos passageiros com renda insuficiente para bancar o custo da prestação dos serviços;
  • É imprescindível a separação da tarifa técnica (remuneração da operação) e da tarifa pública (valor pago pelo usuário), bem como afiançar a segurança jurídica dos contratos de concessão ou de permissão dos serviços. O serviço de transporte público é de responsabilidade do Estado e as empresas operadoras são apenas parte do processo de produção dos serviços.

Imagens – Divulgação e AutoBus

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1 Comentário

  1. João de Deus Cardoso, Arquiteto

    Se eu fosse proprietário de empresa de transporte urbano confiaria plenamente nas informações da NTU presidida por Francisco Cristovam.
    Arquiteto João de Deus Cardoso no Capítulo 09 do Novo Livro do Transporte Interurbano nas décadas 50 a 80 do Corretíssimo Repórter Antônio Ferro

    Responder

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