Por Miguel Angelo Pricinote, coordenador técnico do Mova-se Fórum de Mobilidade
A mobilidade urbana configura um dos desafios centrais das cidades brasileiras neste século: mais do que uma questão de infraestrutura, ela reflete a capacidade das sociedades em conciliar desenvolvimento humano e sustentabilidade ambiental. Em um país onde 85% da população reside em áreas urbanas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as escolhas de transporte determinam não apenas a qualidade de vida, mas nosso impacto coletivo no planeta.
O caso de José, 52 anos, porteiro na periferia de Brasília, ilustra um padrão estrutural. Seu dia inicia às 4h30 para percorrer 32 km até o trabalho. A sequência inclui 15 minutos de caminhada, dois ônibus superlotados e imprevisibilidade crônica. As quase quatro horas diárias dedicadas ao deslocamento representam 19 dias perdidos anualmente. Esse tempo roubado da convivência familiar e do descanso contrasta com os 30 minutos gastos por moradores de áreas centrais no mesmo trajeto.
Além disso, essa disparidade vai além da injustiça social, ela alimenta um ciclo perverso: a falta de opções eficientes força a ida de famílias de baixa renda para regiões periféricas, aumentando as distâncias percorridas e, consequentemente, as emissões de poluentes. Atualmente, o transporte responde por 23% das emissões urbanas no Brasil, segundo o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG).
Nesse cenário, a integração multimodal surge como solução estrutural. Trata-se de combinações planejadas entre ônibus, metrô, bicicletas e transporte por aplicativo, que podem reduzir em até 40% o tempo de deslocamento nas regiões metropolitanas, conforme estudos da Agência Nacional de Transportes Públicos (ANTP). Contudo, isso exige investimentos em três eixos: ampliação da frota, sincronização de horários e infraestrutura dedicada, além do desafio de fazer do transporte público a escolha racional – não a imposição da renda.
Com efeito, a crise climática impõe urgência a essa transformação. No Brasil, a frota de ônibus urbano soma 107 mil veículos, dos quais 85% ainda operam com diesel, segundo a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU). Isso significa que cada um emite, aproximadamente, 1,3 toneladas de CO₂ equivalente mensalmente, já a substituição por energias limpas evitaria a liberação de 1,3 milhão de toneladas de poluentes anuais apenas na malha urbana.
Nesse contexto, a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025 (COP30), que será realizada em Belém (PA), em novembro, oferece um marco decisivo. Como primeira cúpula climática sediada na Amazônia, o evento colocará o Brasil sob os holofotes globais e será a oportunidade para apresentar modelos de mobilidade, que aliem inclusão social e redução de emissões – um exemplo concreto de como economias emergentes podem liderar a transição ecológica.

Miguel Angelo Pricinote
Com vistas nessa direção, um projeto pioneiro avança na Região Metropolitana de Goiânia, onde vinte ônibus operam com biometano derivado de resíduos orgânicos de aterros sanitários e agroindústrias. Tal tecnologia, desenvolvida em parceria com a Universidade Federal de Goiás (UGF), alcança três objetivos simultâneos: redução de 80% nas emissões de CO₂ comparado ao diesel; aproveitamento de 12 mil toneladas/ano de resíduos que seriam descartados; e a diminuição de 30% nos custos operacionais a médio prazo. Além dos ganhos climáticos, moradores relatam melhoria mensurável na qualidade do ar e sensores instalados pelo Instituto de Meteorologia registraram queda de 15% na concentração de material particulado nas regiões atendidas.
Vale ressaltar ainda que a eficiência energética no transporte público produz efeitos em cascata. No caso dos impactos à saúde das pessoas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a poluição do ar cause 50 mil mortes prematuras anuais no Brasil. Por outro lado, veículos limpos reduziriam os gastos do Sistema Único de Saúde (SUS) com doenças respiratórias, que superam R$ 1 bilhão/ano. Simultaneamente, diminuiriam a dependência de combustíveis fósseis – responsável por 45% do déficit comercial brasileiro em 2023.
Mobilidade sustentável é, portanto, política de saúde pública e segurança econômica. Seus benefícios transcendem a esfera ambiental: cada minuto economizado no deslocamento de trabalhadores como José se converte em produtividade econômica e capital social. Projeções do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) indicam que reduzir em 30% os tempos médios de viagem nas capitais injetaria R$ 15 bilhões/ano na economia via ganhos de eficiência.
Sendo assim, a experiência de Goiás oferece lições replicáveis. Primeiro, a descentralização na produção de combustíveis gera empregos locais e resiliência energética. Segundo, as parcerias entre universidades, prefeituras e iniciativa privada aceleram inovações aplicáveis. Terceiro, a transição requer planejamento integrado de rotas otimizadas à renovação gradual de frotas.
Dessa forma, a COP30 será o teste decisivo para o compromisso climático brasileiro. Países desenvolvidos já destinam 25% de seus fundos verdes para transporte sustentável, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e o Brasil pode captar parte desses recursos demonstrando projetos escaláveis. O biometano é uma peça, mas o mosaico inclui eletrificação, corredores exclusivos e integração tarifária.
O horizonte temporal é crítico e, por essa razão, cidades como São Paulo e Curitiba estabeleceram metas para frotas zero emissões até 2035. Cumprir esses prazos exige ações imediatas: linhas de financiamento para municípios, regulação para renovação de frotas e inclusão do transporte no mercado de créditos de carbono. A pergunta decisiva, contudo, não é técnica, mas política: qual lugar ocupará o transporte coletivo na hierarquia de prioridades nacionais? Transformá-lo de problema em solução exigirá coerência entre discurso ambiental e alocação orçamentária.
Destarte, o futuro já deixou de ser abstração. Em 2029, quando a COP30 for memória, trabalhadores como José continuarão acordando antes do amanhecer. A diferença estará em quantas horas de sua vida teremos devolvido e quantas toneladas de carbono teremos evitado. Essa equação define não apenas cidades mais justas, mas um projeto de nação na era climática.
Imagens – Acervo
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